quarta-feira, 28 de março de 2018

Eu “concordo” com Alckmin


O governador Geraldo Alckmin reagiu assim ao atentado contra a caravana de Lula: “acho que eles estão colhendo o que plantaram”.

“Concordo” com o picolé de chuchu.

Plantamos uma política externa soberana, colhemos uma reação do imperialismo.

Plantamos medidas sociais, colhemos uma reação das elites econômicas.

Plantamos tímidas mudanças democráticas, colhemos uma reação das oligarquias políticas.

Plantamos um discurso de paz, eles estão atirando para matar.

Plantamos republicanismo, colhemos fascismo.

O erro cometido por grande parte de nós petistas foi ter acreditado que as regras da vida pessoal se aplicam à luta de classes.

Na vida pessoal, gentileza geralmente é retribuída com gentileza.

Na luta de classes, gentileza geralmente não é retribuída com gentileza.

Muitos petistas acreditaram – como um ex-ministro de Lula deixou claro, em palestra dada a estudantes no ano de 2016 – que se nós fizéssemos um governo moderado, o lado de lá também agiria de forma moderada.

Ledo engano.

Os ricos se tornaram cada vez mais ricos, mas nem por isso toleraram os pobres melhorando de vida.

Não tocamos no oligopólio da comunicação, fortalecemos o Ministério Público e a Polícia Federal, respeitamos as leis etc. E “colhemos” uma perseguição baseada no “princípio” segundo o qual ao inimigo, nem mesmo a lei.

Fizemos uma política de alianças com setores de centro e direita e somos tão complacentes que recentemente um ex-prefeito petista elogiou Alckmin. E “colhemos” não apenas o silêncio, mas um estímulo direto e indireto à perseguição e violência praticada contra nós.

Relho, ovos, pedras, balas... e, se nada de mais grave ocorrer antes, julgamento do habeas corpus e possível prisão.

Nos próximos dias, o petismo vai ter que decidir se continua acreditando que gentileza gera gentileza. Ou se entendeu que situações extraordinárias exigem medidas extraordinárias.


domingo, 25 de março de 2018

Sobre a carta de desligamento de João Paulo Rillo

O deputado estadual João Paulo Rillo decidiu sair do PT.

Sua carta de despedida, intitulada "Um novo caminho" (ver abaixo) arrola alguns argumentos para tentar explicar e justificar sua atitude.

Nenhum desses argumentos é novo.

..."fechou-se um ciclo histórico"...

..."inúteis disputas internas"...

..."nossa posição de mudança radical nos rumos do partido, por ora, foi derrotada"...

O que há de original na carta de Rillo é a explicitação da natureza fundamentalmente parlamentar de sua decisão.

Segundo ele, "tornou-se impossível fazer de mandatos parlamentares trincheiras de resistência política, de formulação programática, espaços de invenção e ousadia, como já foram um dia.  O pragmatismo e a conciliação contaminaram nossa bancada, impedindo qualquer ação mais ousada de enfrentamento à direita paulista" (...) "não se trata de apontar culpados nesse esgarçamento e esgotamento político na bancada. Mas há limites de paciência histórica e convivência. O processo de retaliação e veto continuado ao qual fui submetido acelerou meu ceticismo".

Ou seja: segundo a carta de Rillo, o centro do problema estaria... na bancada de deputados estaduais do PT em São Paulo.

Pode ser tudo verdade.

Mas sair do PT por este motivo -- e no exato momento em que o Partido dos Trabalhadores está sendo vítima de uma operação de cerco e aniquilamento -- é fazer do parlamento (estadual!!!) o centro do mundo.

Uma atitude que os antigos chamavam de cretinismo parlamentar

Comportamento que contamina gente de direita e gente de esquerda, radicais e moderados.

E que motiva este tipo de troca de partido exatamente na véspera de processos eleitorais.

É verdade que a linha política e os métodos predominantes no PT, especialmente no estado de São Paulo, precisam ser alterados de alto a baixo, sob pena de sofrermos novas e mais profundas derrotas.

Mas também é verdade que a batalha em defesa do PT tem um significado histórico que deve ser posto em primeiro lugar.

Por isto, é preciso ter "paciência histórica". Até mesmo com quem perdeu a sua, mesmo que por motivos historicamente menores e pouco nobres.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

UM NOVO CAMINHO

Aos 16 anos, apaixonei-me profundamente. A militância política e o Partido dos Trabalhadores mudaram minha vida para sempre.

Adolescente, tinha sonhado em ser jogador de futebol, astronauta e até cantor de banda de rock, nada além das expectativas da classe média baixa paulista do interior de São Paulo. Embora não fosse filho de trabalhador da indústria – meu pai era funcionário da antiga TELESP –, estudei nove anos no SESI 410, construí grandes amizades, conheci a mãe do meu filho e fui presidente do Centro Cívico. Lá experimentei as maravilhas e as contradições de uma escola bem estruturada e exclusiva, onde misturavam-se classes e, obviamente, predominavam os hábitos, desejos e a cultura dos mais abastados.

Foi na escola pública, no primeiro colegial, que encontrei meus iguais, de origem semelhante e de sonhos parecidos. Identifiquei-me muito mais com a escola pública pobre e guerreira, diferente do disputado e muito bem estruturado SESI 410. No Antônio de Barros Serra, fui atraído para a organização coletiva e para a militância política de esquerda. Foi nessa escola que experimentei meu primeiro gesto de solidariedade de classe, organizando com outros colegas nossa primeira paralisação estudantil em apoio à greve dos serventes e merendeiras por melhores condições de salário e trabalho.

Daí, fomos convidados para participar da reorganização do movimento estudantil em Rio Preto em 1993, alguns meses depois das gigantescas passeatas dos caras pintadas pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo. Na primeira assembleia geral no tradicional Instituto Monsenhor Gonçalves, fui acompanhado de meia dúzia de amigos, eu vestia uma camiseta da Legião Urbana, o Fabrício, uma do Pink Floyd e o Luizão, a do Raul Seixas – até aquele momento, essas camisetas eram a expressão máxima da nossa rebeldia.

O êxito da nossa paralisação me levou a compor a pró-UMES, uma comissão de nove estudantes que organizaria a eleição da primeira diretoria da UMES. As demais diretorias foram eleitas em congressos estudantis, mas a primeira foi eleição direta. Com o lema “Organize sua rebeldia”, quase 16 mil estudantes votaram em uma chapa unificada e nascia ali uma entidade estudantil forte e representativa, que, de certa forma, interferiu na vida pública da cidade. Fui eleito diretor de Cultura na primeira diretoria e, no ano seguinte, presidente no primeiro congresso da UMES, em uma disputa acirradíssima contra a juventude do PMDB.

Os partidos de esquerda e de centro-esquerda da época – PT, PCdoB, PCB, PV, PDT e, pasmem, parte do PSDB – estavam no suporte dessa organização. Mas a predominância era a militância petista. As pessoas mais cativantes, preparadas e encantadoras eram do PT. O partido dava organicidade e coesão política ao movimento. A entidade era autônoma, com suas diversidades ideológicas e dinâmica própria, mas era no partido onde buscávamos orientação e rumo para a nossa luta estudantil.

Foi uma época de muita efervescência e formação política. Fui facilmente “cooptado” por essa que é, até hoje, uma grande a arrebatadora paixão: a militância petista. O PT se reunia toda semana, avaliava a conjuntura e organizava as tarefas da audaciosa construção de um projeto de transformação do país. Existia um sentimento de pertencimento, de permitir a cada um ser protagonista da própria história, de se sentir importante na busca de uma utopia possível.

O partido, desde então, passou a ser minha casa e minha família de caminhada. Os companheiros eram críticos e duros entre si nas discussões e divergências políticas, mas eram doces, ternos e solidários nas relações humanas. O PT acolhia todos aqueles que, por algum motivo, sentiam-se excluídos de uma sociedade mercadológica e opressora.

A juventude do PT de Rio Preto se tornou muito forte e organizada. Em dois anos de militância, passamos a ser o maior núcleo do PT. Com apenas 18 anos, disputei uma eleição interna e, por uma diferença de apenas 9 votos, assumi, junto com meus jovens companheiros, a presidência e a direção do partido.

Depois de 22 anos de muita luta e construção, chegamos à Presidência da República e mudamos para melhor a vida de milhões de brasileiras e brasileiros. Iniciamos uma mudança estrutural nesse país, interrompida brusca e traiçoeiramente por uma elite financeira perversa e odiosa. Se é verdade que a perseguição ao Lula e ao PT é muito mais pelos acertos do que pelos erros, também é verdade que nossos erros e contradições facilitaram em muito o plano golpista. Mas só o tempo poderá esclarecer com precisão quais foram os nossos erros e desvios de percurso. Não cabe aqui, fazer esse balanço. A história o fará muito melhor de que qualquer um de nós.

Nem nos piores pesadelos seria imaginável um retrocesso tão grande, tão cruel com os mais pobres e exterminador de esperanças como esse golpe de estado continuado. Um golpe diferente, sempre comandado por interesses internacionais, mas engendrado dentro de instituições moderadoras da nossa democracia. Dessa vez, sem tanques e cavalaria, eles vieram de toga, galopando no pasto do grande latifúndio da mídia familiar. Levaram milhões às ruas, compraram o sempre disponível parlamento e patrocinaram a sucumbência da política em favor da nova tirania financista do século XXI. O sistema financeiro capturou a democracia e o estado brasileiro e levará até as últimas consequências a drástica redução do estado social e a entrega das riquezas naturais e estruturantes do nosso povo.

Os partidos de centro e direita, como PSB, PV, PMDB, PSDB, PPS e cia., capitularam na massacrante narrativa de “combate” à corrupção. Iludiram-se com a indignação seletiva da burguesia. Pensaram que passariam ilesos e triunfariam sobre o corpo estendido de Lula e do PT. Nem uma coisa nem outra aconteceu.

O PT mantém-se vivo e no jogo e Lula lidera todas as pesquisas de opinião. A resistência ainda não chegou às massas, mas as ruas continuam inquietas e ruidosas a cada avanço contra os direitos sociais.

Neste partido, que foi minha casa durante 25 anos, aprendi a ter lado na vida. Mas fechou-se um ciclo histórico, não posso permitir que meu otimismo na ação política se perca em inúteis disputas internas. Nossa posição de mudança radical nos rumos do partido, por ora, foi derrotada.

Há tempos cumpro a tarefa da representação parlamentar e minhas diferenças política com a maioria da bancada, hoje, são abissais. A bancada de deputados estadual se tornou uma instância máxima de deliberações à revelia das direções partidárias, subverteu a lógica e, hoje, é ela quem orienta o partido e não o contrário. Na minha visão, tornou-se impossível fazer de mandatos parlamentares trincheiras de resistência política, de formulação programática, espaços de invenção e ousadia, como já foram um dia.  O pragmatismo e a conciliação contaminaram nossa bancada, impedindo qualquer ação mais ousada de enfrentamento à direita paulista.

Não se trata de apontar culpados nesse esgarçamento e esgotamento político na bancada. Mas há limites de paciência histórica e convivência. O processo de retaliação e veto continuado ao qual fui submetido acelerou meu ceticismo. O PT de São Paulo fez uma opção por um comportamento dócil com seus adversários, duro com os divergentes internos e demasiadamente burocratizado e distante da sua militância. Essa constatação é cristalina, especialmente no interior do Estado, de onde venho. Porém, os intensos e bons momentos vividos dentro do PT se sobrepõem a qualquer indisposição colateral advinda de disputas políticas.

Encerro por aqui as críticas dentro do PT. Saúdo aos que ainda encontram energia para resistir nessa expectativa. Em especial as companheiras e companheiros do coletivo Plenária Democrática e Socialista, com quem convivi fraternalmente no último período.

Perco o direito de discutir os rumos do partido, as mudanças e reformulações que acreditei que poderiam e deveriam ser feitas. Hoje, resta-me apenas o dever da gratidão e do reconhecimento a este que é, sem dúvida, ainda, o principal instrumento da classe trabalhadora deste país. Aprendi também que as mulheres e homens de esquerda, por mais que discordem, sempre estarão do mesmo lado.

Hoje, sinto necessidade de sentir o cheiro da esperança e da utopia que os botons, os quadros, os cartazes, os panfletos, as colas de polvilho, as nossas festas e a nossa militância exalavam. Desejo servir novamente a um novo projeto a ser construído “tijolo por tijolo num desenho mágico”. Despeço-me da condição de incendiário interno nos últimos anos para depositar essa energia na construção de unidade entres nós, mulheres e homens de esquerda, plantar e regar novos sonhos e utopias.

Resisti em tomar o caminho incontornável, em parte, pelo obstáculo severo reproduzido na seara de siglas sem qualquer conteúdo ideológico. Em outra parte, pelo lado esquerdo do peito que sempre teve Lula e o PT guardados, misturados a meu sangue e oxigênio.

Foi com esperança que acompanhei o PSOL rotacionar ao ponto de posicionar-se clara e oficialmente a favor da participação de Lula nas eleições e contra o processo judicial seletivo ao qual o ex-presidente tem sido submetido. Uma sinalização inquestionável de um partido cujo amadurecimento político admite a importância da liderança de Lula, ainda que mantenha críticas ao partido que, em parte, fariam bem inclusive ao próprio PT.

Um PSOL que, desta forma, solidário a Lula na trajetória nefasta imposta por uma Justiça cega e solerte, observa o recrudescimento da violência vitimando sua própria liderança.

Um PSOL cujo aprofundamento ideológico o lança com altivez e ousadia a um novo processo de construção, optando por um brilhante líder de 35 anos, acompanhado de uma líder indígena ao cargo máximo de direção dessa Nação. Guilherme Boulos e Sonia Guajajara nos representarão em uma das eleições mais tensas e intensas da história desse país.

Se tudo é muito simples, singelo e pequeno comparado a outras estruturas partidárias, existe por trás uma sofisticada utopia, uma grandeza de propósito e uma vontade verdadeira de forjar novas experiências de linguagem e organização.

Sinto-me bem e leve ao fazer a maior e mais intensa travessia da minha vida.

Saio do PT, mas sigo na luta contra a perseguição do partido, do presidente Lula e comprometido com a construção do primeiro ensaio de uma frente democrática e popular, um movimento, uma candidatura que é a aliança honesta da construção partidária com a construção de reconhecidos movimentos sociais. Esse é um mérito histórico que o PSOL, corajosamente, crava em sua trajetória.

Desejo sorte e vida longa ao maior e mais popular partido de esquerda da América Latina.

Minha casa agora é outra, mas continuo morando na mesma rua e a esquina da História será sempre o nosso ponto de encontro.

Até breve, companheiros!

A nossa luta continua!

João Paulo Rillo

quinta-feira, 22 de março de 2018

Qual é o cálculo de Fernando Haddad?

A entrevista de Fernando Haddad ao jornal Folha de S.Paulo, publicada no mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal agendou o julgamento do habeas corpus do presidente Lula, não inova frente a outros textos e entrevistas recentes do ex-prefeito de São Paulo. 

A vitória de Dória na eleição de 2016 entra na conta dos acertos e erros dos outros. Os erros próprios são apresentados de maneira ambígua, como se fossem acertos incompreendidos: “minha administração, que deve ter contrariado também interesses, pesou também. Eu atribuo uma parte da derrota a medidas que eu tomei. Não tenho dúvidas disso. Mas tomaria igual, não me arrependo”.

Sobre as reivindicações de 2013, Haddad adota o mesmo critério: “o que eu questiono (..) foi a forma com que eles se relacionaram com o poder público. Existia uma repulsa ao debate, ao diálogo”. Nenhuma palavra sobre a demora em cancelar o reajuste da passagem de ônibus, nem sobre a bizarra decisão de fazer isto em companhia de Alckmin. Que, aliás, ganha absolutamente de graça um “nada consta” no quesito corrupção.

Outro tucano citado na entrevista de Haddad é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Seu “maior erro”, segundo Haddad, teria sido “não atacar a desigualdade. Ela permaneceu inalterada durante oito anos”. 

O uso da palavra erro (e não opção política, escolha coerente com determinados interesses de classe) talvez seja um péssimo cacoete acadêmico, como se pode depreender do complemento do raciocínio de Haddad: “Vindo isso da parte de quem veio, uma pessoa com a formação que o Fernando Henrique tem, é grave. O Fernando Henrique escreveu a obra dele acadêmica voltada para essa questão da escravidão, a questão do negro, a questão da exclusão”. 

Mas cacoetes acadêmicos não explicam a afirmação que Haddad faz acerca do Plano Real. 

Perguntado sobre se o PT errou em não apoiar o Plano, Haddad responde que “o PT tinha uma avaliação de que o Plano Real seria mais um plano na ordem dos planos todos que fracassaram. Como ele foi feito muito no calor da eleição, imaginou-se ali que ele não teria sustentabilidade, e ele veio a ter. A falha é que o Plano Real não tinha uma dimensão social. Então minha resposta é sim e não; a parte boa do Real foi a estabilidade, mas ele não veio acompanhado de medidas sociais importantes”.

De fato havia no PT gente que criticou o Plano Real por ser eleitoreiro e que desacreditou de seu sucesso no curto prazo. Mas isto nunca foi o fundamental da crítica feita pelo PT ao Plano Real. O fundamental foi dizer que se tratava de um plano de estabilização baseado em instrumentos que causariam, como efetivamente causaram, gravíssimos efeitos de médio e longo prazo, entre os quais a privatização, o endividamento público, a perda de soberania nacional, o desemprego etc. Motivos pelos quais não faz o menor sentido elogiar a “estabilidade” e lamentar a ausência de uma “dimensão social”. 

A impressão que fica é que Haddad foi capturado pela lógica implícita numa pergunta da Folha, acerca do “binômio PSDB e PT no governo”. Ou, pelo menos, que ele está coberto de razão quando diz que “depois que você passa pelo governo, você muda”.

Muda, mas nem tanto: como Haddad faz questão de lembrar, há décadas ele se considera socialista. Mas seu parâmetro de socialismo são “alguns países social-democratas europeus”, os “Países Baixosos países escandinavos”, “nórdicos”. Seu modelo de socialismo é a social-democracia europeia. Sobre outras experiências -- algumas das quais contribuíram direta ou indiretamente para criar as condições para que o chamado estado de bem-estar social pudesse existir-- Haddad reserva crítica brutal e apelo à Nossa Senhora!!!

A generosidade de Haddad para com os tucanos persiste, mesmo quando se trata de analisar o “ódio contra o Lula”. 

Os partidos de direita (PSDB inclusive), o oligopólio da comunicação (Folha inclusive), o grande capital e seus aliados estrangeiros, nada disto é citado. 

O único que merece menção é o “ressentimento das classes médias tradicionais que efetivamente não mudaram de patamar. Elas viram o rico se distanciar e o pobre se aproximar”. 

Ressentimento que, na opinião do ex-prefeito, teria sido alimentado pelos “escândalos”: “tanto o caso de 2005, do mensalão, quanto o caso da Petrobras”, assuntos sobre os quais Haddad dá uma resposta totalmente defensiva, rebaixada e errada.

Mas o pior da entrevista aparece quando a Folha faz a seguinte pergunta: “O ex-presidente Fernando Henrique falou na entrevista que fiz com ele que o que separava o PT e o PSDB no passado era muito mais disputa de poder do que ideológica. Falou que se pudesse ter voltado no tempo teria se aproximado do Lula e de forças progressistas. Essas afirmações e movimentos fazem sentido para o senhor?”

Haddad responde assim: “Fazem. O PT tem críticas ao governo do Fernando Henrique. Vou citar uma delas, que é a agenda social. O PSDB tem uma crítica aos governos do PT, sobretudo ao governo da presidenta Dilma, porque, em relação ao Lula em 2010, você há de lembrar que o [senador tucano José] Serra não fez oposição ao Lula. Eu, por exemplo, fui criticado por ter ido à ópera com Fernando Henrique”.

Quero crer que a resposta do ex-prefeito tenha sido distorcida pela edição do jornal. Quanto ao mérito, o ponto é bastante simples. Se o PSDB fosse social-democrata no sentido clássico da palavra, é provável que petistas e tucanos tivessem construído uma sólida aliança. Acontece que o PSDB não é social-democrata no sentido clássico, o PSDB é neoliberal. É principalmente por isto que a história do Brasil, desde 1994, vem sendo polarizada pela disputa ideológica e política entre petistas e tucanos. 

É compreensível que setores do PSDB gostem de disfarçar seu conservadorismo. É ainda mais compreensível vindo de um ególatra como FHC. Mas que setores do PT alimentem este trololó é algo que oscila entre o masoquismo e a estupidez. 

Como Haddad não me parece sofrer de nenhuma destas características, há outra hipótese: um determinado cálculo acerca do que vai ocorrer nos próximos dias, meses e anos. 

Que cálculo é este, é assunto para outro texto. 

Mas me parece diferente do adotado por quem acredita que, em 2018, "a disputa deverá ser outra vez entre tucanos e PT".

Segue a entrevista criticada.

•      ENTREVISTA - ”Divergências não podem nos impedir de sentar e conversar, diz Haddad” - Recentemente entrevistei o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que declarou que, se pudesse reviver o passado, teria se aproximado não só do Lula, mas de forças políticas progressistas em geral. Depois que FHC foi a uma ópera na companhia do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), resolvi investigar a reciprocidade desta ideia e a saúde da nossa democracia.
•      Folha - Pensando nesses muitos anos do binômio PSDB e PT no governo, o que o sr. enxerga como conquistas e erros desses dois grupos?
•      Fernando Haddad - Vários aspectos da organização do Estado brasileiro vieram no bojo da estabilização monetária. Aproveitou-se aquele contexto para organizar certos setores da máquina pública. No caso do PT, organizou uma agenda de desenvolvimento inclusivo. Mesmo quando você pensa no milagre econômico da ditadura, você vê que a desigualdade ali nunca foi enfrentada para valer. A educação nunca foi prioridade no Brasil. Veja o que aconteceu com o orçamento do Ministério da Educação durante o governo Lula. O governo Fernando Henrique deixou um orçamento no MEC que era uma brincadeira. Eu deixei como um dos ministérios mais importantes da República, com mais de R$ 100 bilhões de orçamento, saindo de R$ 20 [bilhões]. Aquela ideia do Lula de não governar só para um terço da população vingou. Ela foi demonstrada na prática como viável.
o      E os erros?
o      Eu acho que o maior erro do governo Fernando Henrique foi não atacar a desigualdade. Ela permaneceu inalterada durante oito anos. Vindo isso da parte de quem veio, uma pessoa com a formação que o Fernando Henrique tem, é grave. O Fernando Henrique escreveu a obra dele acadêmica voltada para essa questão da escravidão, a questão do negro, a questão da exclusão. Durante oito anos, você não teve nenhum enfrentamento com a questão da desigualdade, que é o principal problema do país. Da parte do Lula, na minha opinião, também houve um erro grave, que foi não ter feito a reforma política. É óbvio que aquilo era um calcanhar de Aquiles, é óbvio que o sistema partidário brasileiro precisava de uma alteração profunda, era evidente que nós não íamos longe com aquele sistema. Eu acho que a gente estressou [insistiu] pouco. Alguém dirá "mas não era possível conseguir, não ia aprovar...". Mas nós estressamos pouco. Então nós devíamos ter dado um passo no sentido de sanear o quadro partidário no Brasil.
o      O sr. acha que o PT errou em não apoiar o Plano Real?
o      Eu acho que o PT tinha uma avaliação de que o Plano Real seria mais um plano na ordem dos planos todos que fracassaram. Como ele foi feito muito no calor da eleição, imaginou-se ali que ele não teria sustentabilidade, e ele veio a ter. A falha é que o Plano Real não tinha uma dimensão social. Então minha resposta é sim e não; a parte boa do Real foi a estabilidade, mas ele não veio acompanhado de medidas sociais importantes.
o      Sobre as reivindicações de 2013, o sr. teve uma declaração célebre dizendo que "aproveita que está pedindo Passe Livre, também pede almoço grátis e uma viagem para Disney." O sr. acha que existe às vezes um descolamento de setores da esquerda entre o que é desejável e o que é possível?
o      Eu não tenho nenhuma antipatia, muito pelo contrário, com aquela pauta de reivindicação. Eu lembro que, dois meses antes das manifestações de junho, dei uma entrevista para a Folha de S.Paulo, reivindicando a municipalização da Cide, que é um imposto que incide sobre a gasolina, para os prefeitos do Brasil inteiro terem verba para não terem que aumentar a tarifa e terem que subsidiar uma fonte nova de arrecadação. Portanto, eu seria o último a declarar aquela agenda ilegítima. O que eu questiono de 2013 foi a forma com que eles se relacionaram com o poder público. Existia uma repulsa ao debate, ao diálogo.
o      Mas o sr. acha que existe, por parte de setores da esquerda, uma falta de compreensão das restrições orçamentárias?
o      Olha, da parte dos governos de esquerda, existe muito mais compreensão dos limites hoje. Depois que você passa pelo governo, você muda, passar por um governo educa.
o      Ao que o sr. atribui a escalada de ódio contra o Lula?
o      Eu acho que aconteceu uma coisa no Brasil que precisa ser estudada com mais vagar. Os ricos ficaram mais ricos, os pobres ficaram bem menos pobres, e a camada intermediária estagnou e até perdeu posição relativa em relação aos extremos. Eu acho que isso gerou um ressentimento de pouca atenção para aquele trabalhador que tinha o filho na escola particular, porque queria dar mais qualidade de ensino do que o oferecido pela escola pública, que tinha um plano de saúde porque queria ter um atendimento médico superior ao oferecido pelo SUS. Havia um ressentimento das classes médias tradicionais que efetivamente não mudaram de patamar. Elas viram o rico se distanciar e o pobre se aproximar. A gente tinha que cuidar dessa camada social intermediária, porque às vezes não se tratava só de bens econômicos. Às vezes era um chamado para um país mais justo. Então tinha até aberto uma agenda, uma agenda política com estes setores intermediários. E esse ressentimento se acumulou, e obviamente que os escândalos acabaram alimentando esse sentimento. Acho que tanto o caso de 2005, do mensalão, quanto o caso da Petrobras alimentaram um certo ressentimento.
o      Como o sr. vê os escândalos do PT, que tinha como sua principal bandeira combater a corrupção?
o      É evidente que existe um gradiente de comportamentos menos graves e mais graves. Embora todo erro deva ser condenado, você não pode comparar uma pessoa que assaltou os cofres públicos para enriquecimento pessoal de uma outra que eventualmente não registrou R$ 5.000 que foram doados para a campanha dele num jantar. Dinheiro lícito. Eu acho que tem muito político que admitiu receber recursos não contabilizados para pagar dívidas de campanha, mas que não pensava que esse recurso pudesse ter origem ilícita. Acho que a Justiça precisa dar um tratamento para esse sujeito, que está previsto na lei --duro, mas proporcional ao delito.
o      O ex-presidente Fernando Henrique falou na entrevista que fiz com ele que o que separava o PT e o PSDB no passado era muito mais disputa de poder do que ideológica. Falou que se pudesse ter voltado no tempo teria se aproximado do Lula e de forças progressistas. Essas afirmações e movimentos fazem sentido para o senhor?
o      Fazem. O PT tem críticas ao governo do Fernando Henrique. Vou citar uma delas, que é a agenda social. O PSDB tem uma crítica aos governos do PT, sobretudo ao governo da presidenta Dilma, porque, em relação ao Lula em 2010, você há de lembrar que o [senador tucano José] Serra não fez oposição ao Lula. Eu, por exemplo, fui criticado por ter ido à ópera com Fernando Henrique.
o      O sr. tem convicção da inocência do ex-presidente Lula?
o      Eu tenho a convicção de quem leu o processo. Eu sempre repito que eu defendo a honra de uma pessoa independentemente de posição partidária. Fui perguntado já duas ou três vezes sobre as acusações que se faz ao governador Alckmin. Eu disse: "Olha, trabalhei quatro anos como prefeito e ele governador. Nunca ouvi nada de um empresário". Porque essas notícias nos bastidores correm, sobre quem é correto e quem não é. Então eu li o processo e eu acho insustentável aquela sentença [contra o Lula]. Bom, não vou passar mão nem na cabeça de Lula, nem de Alckmin, nem de Fernando Henrique, nem de um filho meu. De novo, uma coisa é agenda partidária, outra coisa é agenda de Estado. Defender a honra de uma pessoa que você sabe que procede de maneira correta, você não pode fazer política em torno disso.
o      Se Lula for impedido de concorrer, qual sua leitura sobre a nossa democracia?
o      Eu acho ruim sob todos os aspectos. Porque vai ficar mais uma mácula na nossa história democrática, e grave. Não é uma coisa qualquer o que vai acontecer, de maneira que eu preferia que isso tivesse um outro desenlace.
o      O sr. considera sair como candidato a presidente caso Lula esteja impedido de concorrer?
o      Eu não coloquei minha candidatura. Existe hoje um sentimento de solidariedade ao Lula tão grande dentro do PT que, estou sendo muito sincero, ninguém conversa sobre isso nem nos bastidores. A gente acredita que em algum momento a inocência dele vai ser reconhecida. Agora, existe a chance de isso não acontecer? Existe. Mas nós não estamos trabalhando com essa hipótese e não estamos elaborando cenários, no caso de ocorrer. É uma situação de risco, mas que nós quisemos assumir.
o      O sr. atribui ter perdido a disputa para Doria ao fato de a rejeição ao PT ter crescido?
o      Acho que uma série de coisas pesou. A recessão econômica foi muito forte. Praticamente nenhum prefeito importante do Sudeste e do Sul se reelegeu ou fez o sucessor. O fato de [Luiza] Erundina e Marta [Suplicy] terem saído candidatas, uma pelo PSOL e uma pelo MDB, também pesou. A situação do PT em 2016 era o pior momento da história do partido, e a minha administração, que deve ter contrariado também interesses, pesou também. Eu atribuo uma parte da derrota a medidas que eu tomei. Não tenho dúvidas disso. Mas tomaria igual, não me arrependo.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Sobre a violência da ultra-direita

Antes mesmo do golpe de 2016, já estava evidente o crescimento da intolerância e da violência.

A esse respeito a tese Partido para tempos de guerra, apresentada ao 5º Congresso do Partido dos Trabalhadores em junho de 2015, dizia: 

“A direita tenta resolver o impasse via reforma política conservadora, judicialização da política e criminalização da mobilização social. É neste contexto que deve ser interpretada a mais recente onda de violência policial militar contra a juventude pobre e negra das periferias das grandes cidades e contra os movimentos sociais, em especial nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Não se trata de desvio nem de novidade, pois tem sido esta a prática das PMs desde a Ditadura Militar. Mas sinaliza uma ação organizada de setores da direita que apostam no extermínio e no fascismo”.

Apesar deste e de outros alertas, a maior parte da esquerda brasileira não adotou e segue sem adotar medidas básicas para tentar se proteger da escalada da violência que desde então, entre outros danos irreparáveis, ceifou um número expressivo de vidas, como é o caso de Marielle e Anderson.

Uma medida imediata e muito simples é que todas as organizações realizem, no prazo mais curto possível, atividades tendo como tema debater a proteção das nossas vidas, atividades, espaços e comunicações.

Nestas atividades deveriam ser abordados, entre outros, os seguintes temas:

*A análise de situações, na história do Brasil e do mundo, de violência sistemática e aguda contra partidos de esquerda e contra movimentos sociais;

*A análise do discurso e da prática de violência paramilitar da direita, no Brasil e em outros países;

*A relação entre a violência paramilitar da direita e a atuação dos aparatos estatais de “segurança pública”;

*A relação entre a violência oficial, a violência paramilitar e a violência do crime organizado;

*A disseminação e a naturalização da violência, do medo e, ao mesmo tempo, da “sociedade de controle” na vida cotidiana: família, escola, locais de trabalho, ambientes públicos;

*A experiência acumulada, no Brasil e em outros países, nesta época e no passado, de proteção da vida, das atividades, das sedes e das informações de partidos de esquerda e de movimentos sociais, incluindo “serviços de ordem” para proteger manifestações; proteção dos espaços físicos; proteção de lideranças e figuras públicas; proteção das informações;

*A experiência acumulada no trato com grupos intitulados de “ação direta”;

*A experiência acumulada no que diz respeito a antecipar os movimentos violentos da direita, incluindo aí detectar infiltrados e provocadores, monitorar ameaças e prevenir intenções agressivas.

Além de promover a discussão dos temas acima, cada uma de nossas organizações poderia e deveria avaliar a conveniência de buscar ajuda especializada junto a militantes que tenham experiência na área.

Por exemplo, implementar nas sedes de cada uma de nossas organizações medidas preventivas frente a ataques, invasões e escutas clandestinas, assim como treinando quem trabalha nas sedes sobre como devem proceder frente a algum episódio deste tipo.

Além disso, todas as organizações, ao planejar atividades públicas, deveriam incluir um tópico sobre a proteção das atividades e das vidas dos envolvidos, levando em conta o que possam fazer os órgãos de “segurança pública”, os grupos paramilitares de direita e os grupos de “ação direta”.

Ademais, toda a militância -- especialmente as lideranças públicas -- deveria avaliar sua rotina do ponto de vista da proteção da vida, introduzindo as devidas mudanças na rotina pessoal, nos deslocamentos e durante as atividades. 

Uma das rotinas mais comuns, atualmente, é o uso de computadores e redes sociais. Todos estes equipamentos e comunicações podem ser (e muitas vezes são) acessados por terceiros, inclusive remotamente. Mesmo assim, há medidas simples que podem ser tomadas, para proteger as informações e comunicações dos partidos de esquerda e movimentos sociais.

Finalmente, sem prejuízo de outras iniciativas, é preciso estudar e acompanhar de maneira sistemática as movimentações (virtuais e não virtuais) da direita violenta. 

Faz tempo que este tema precisa ser tratado, com ciência e organização. E sem mistérios, dissimulações e secretismos: não está em jogo apenas o nosso direito de atuar politicamente, está em jogo  proteger a vida de cada companheiro e companheira.

A palestra de Carlos Ominami


No dia 17 de março, Carlos Ominani proferiu palestra no Instituto Novos Paradigmas (INP), que tem Tarso Genro como presidente de seu conselho deliberativo.

Carlos Ominami foi senador do Chine, milita na esquerda desde os tempos do governo Salvador Allende, conhece bastante o Brasil e o PT.

Sua palestra foi sobre "Quem somos: a esquerda, a social democracia reinventada e o progressismo ?"

A palestra de Ominami foi resumida por Sandra Bittencourt, num texto publicado por Sul21 que pode ser acessado aqui:


O editor de Sul21 destacou no título a seguinte frase, atribuída a Ominami: "Não vamos construir o socialismo em um horizonte previsível".

Já Sandra Bittencourt começa seu artigo com a frase: “Estamos obrigados a uma reflexão estratégica".

A questão é: que tipo de reflexão estratégica pode resultar de um raciocínio que concede ao inimigo todo o horizonte previsível?

Sempre segundo Sandra Bittencourt, Ominami disse o seguinte: "Pode ser que o que eu fale agora soe muito forte, mas não vamos construir o socialismo em um horizonte previsível. Sendo assim precisamos enfrentar três questões estruturantes: a democracia como sistema político, a economia de mercado e a globalização. Nesse espaço se deve desenvolver uma ação transformadora de esquerda".

Noutras palavras: a “ação transformadora da esquerda” deve “enfrentar” os temas da “democracia”, da “economia de mercado” e da “globalização”, mas como por definição a construção do socialismo está afastada do “horizonte previsível”, então na prática nossa ação visa “transformar” as condições sobre as quais vivemos, mas sem sair do “espaço” do capitalismo.

Até aí, nada de novo. O curioso é que esta “reflexão estratégica” não leva em conta as derrotas que sofremos na América Latina, nos últimos anos.

Derrotas que em parte estão ligadas, justamente, a esta maneira de pensar, que nos limita de antemão, por uma definição apriorística, a considerar que construir o socialismo está fora do horizonte previsível.

Segundo Sandra Bittencourt, depois de relacionar várias das derrotas que a esquerda latino-americana vem sofrendo desde 2010, Ominami disse que “não éramos a revolução, mas éramos a nova esquerda fazendo coisas importantes. Vivemos a melhor década da América Latina. Democracia, crescimento, inflação controlada e diminuição da pobreza, isso tudo no continente das grandes ditaduras, da pobreza, da desigualdade".

Pois é: “éramos”, segundo Ominami, aquilo que ele defende que continuemos a ser. Não vejo nisto reflexão estratégia alguma, mas sim a reiteração de uma determinada aposta.

Aposta que teve origem, segundo relato de Sandra Bittencourt acerca do que Ominami afirmou na palestra, na crença de que poderia ter ocorrido, nos anos 1970, uma globalização socialdemocrata, com uma ideia de governança mundial, que pudesse gerar transferências massivas de recursos de países ricos a pobres, enfim, uma nova ordem econômica. Mas “se impôs uma globalização baseada no capital”.

E como poderia ser diferente? Afinal, o chamado estado de bem-estar social defendido como modelo pela socialdemocracia europeia só foi possível graças a uma combinação entre pressão “de dentro” (a força da classe trabalhadora europeia vis a vis seus contendores), pressão “de fora” (a chamada ameaça comunista, que também tinha seus reflexos internos a cada país), investimentos dos EUA e – condição sine qua non-- a existência de um mundo a explorar.

A medida que estas variáveis foram se alterando, o estado de bem estar foi se enfraquecendo e hoje, na própria Europa, está sob liquidação. Mostrando que a relação entre capitalismo, bem estar e democracia não é aquela que a social-democracia pensava ser. 

Acreditar que o "estado de bem estar" poderia ser implantado nos países do capitalismo periférico sempre foi uma imensa ilusão. Aqui, para ter um “estado de bem estar socialdemocrata”, será preciso uma revolução socialista bem radical.

Revolução que Ominami considera, segundo Sandra Bittencourt, algo “fora da agenda”.

O socialismo está fora do horizonte previsível, a revolução está fora da agenda, a “nova esquerda” latino-americana está sendo derrotada, a “socialdemocracia não foi capaz de se impor à globalização”, a China “é basicamente um capitalismo de Estado, muito dinâmico, muito autoritário e muito desigual”...

Qual a alternativa?

Segundo relato de Sandra Bittencourt, Ominami teria dito: "Saber quem somos, a esquerda, o progressismo, não é uma questão puramente semântica. Precisamos saber de que lugar, de que modo, vamos vencer o desafio das desigualdades, que faz parte do DNA da esquerda. Mas junto ao desafio da desigualdade há outras questões igualmente urgentes e importantes. A democracia é uma delas. A cultura da esquerda na questão democrática é complexa. Temos o desafio ecológico, há um desafio ambiental, de sustentabilidade, que precisa ser enfrentado. Temos ainda o desafio de gênero, porque ainda há uma esquerda com tendências machistas. E temos uma esquerda muito vinculada à cultura estatal, pouco aberta à inovação".

Neste nível de generalidade, nada contra nada. Podemos querer ser radicalmente democráticos; laicos; solidários socialmente; vinculados à sociedade; verdes; feministas; abertos ao mundo, inovadores e transparentes. 

[Não entendo, entretanto, por qual motivo deveríamos ser meritocráticos.]

Mas, principalmente, não entendo por qual motivo, neste mundo em que vivemos, não devemos ser, antes de mais nada, socialistas e revolucionários.

Pois a conclusão que Ominami tira, sempre segundo SB, é defender o “progressismo”, não como “uma esquerda light, mas que recupera espaço. Precisamos definir se estaremos na vanguarda ou na retaguarda, em que posição vamos enfrentar as coisas".

Façam as contas: se o socialismo está fora do horizonte previsível, se a revolução está fora da agenda, o tal “progressismo” estaria na “vanguarda” do que mesmo?

Ou, dito de outro jeito: como é que o socialismo vai entrar no horizonte visível e previsível, se não houver quem lute por ele?

Segue o texto comentado:


 Carlos Ominami: "Não vamos construir o socialismo em um horizonte previsível"
Publicado em: Março 17, 2018

Carlos Ominami participou de um debate sobre a identidade da esquerda, promovido pelo Instituto Novos Paradigmas. (Foto: Sandra Bitencourt/Divulgação).

Sandra Bitencourt (*)
"Estamos obrigados a uma reflexão estratégica", resumiu Carlos Ominami durante a palestra "Quem somos: a esquerda, a social democracia reinventada e o progressismo ?", promovida neste sábado (17), em Porto Alegre, pelo Instituto Novos Paradigmas (INP). Doutor em Economia, ex-ministro da Economia do Chile, senador por dois mandatos e histórico militante pela "concertação" no seu país, Ominami foi anunciado formalmente pelo Presidente do Conselho Deliberativo do INP, ex-governador Tarso Genro, como o mais novo integrante do Conselho do Instituto. Ominami debateu com uma plateia formada por intelectuais, autoridades, parlamentares, professores e estudantes.
Para o político chileno, estamos vivendo tempos muito difíceis e, particularmente no Brasil, foi onde provavelmente ocorreu o fato mais grave das últimas décadas na América Latina. Ele referiu um acúmulo de más notícias para a esquerda, a partir de 2010, com a direita voltando ao poder no Chile pela primeira vez depois de 20 anos de concertação, a destituição de Lugo (ex-presidente paraguaio Fernando Lugo deposto em 2012), o triunfo imprevisível de Macri na Argentina em 2015, a derrota de Evo Morales no referendo em 2016, o golpe contra Dilma, a crise política na Venezuela e o processo de decomposição da revolução cidadã no Equador. "Não éramos a revolução, mas éramos a nova esquerda fazendo coisas importantes. Vivemos a melhor década da América Latina. Democracia, crescimento, inflação controlada e diminuição da pobreza, isso tudo no continente das grandes ditaduras, da pobreza, da desigualdade", recordou. E advertiu:
"É bom ter os pés na terra para saber onde estamos pisando. Dois pequenos países resistem e fazem um contraponto hoje, Uruguai e Portugal, mas são países pequenos, são a exceção que confirma a regra". Por isso, a obrigação de fazer uma reflexão estratégica. "Pode ser que o que eu fale agora soe muito forte, mas não vamos construir o socialismo em um horizonte previsível. Sendo assim precisamos enfrentar três questões estruturantes: a democracia como sistema político, a economia de mercado e a globalização. Nesse espaço se deve desenvolver uma ação transformadora de esquerda", defendeu.
Ominami assinalou ainda que, nos anos 70, houve a possibilidade de uma globalização socialdemocrata, com uma ideia de governança mundial, que pudesse gerar transferências massivas de recursos de países ricos a pobres, enfim, uma nova ordem econômica. "Mas se impôs uma globalização baseada no capital, o que restringe a autonomia, a possibilidade de manobra dos países nacionais. A expressão mais direta disso são as agências de classificação de risco, que ameaçam e interferem qualquer tentativa de política fiscal. São instrumentos da globalização neoliberal para frear os progressos dos países sobre níveis de pobreza e igualdade", apontou.


Para o economista, a interrogação que devemos fazer já que a revolução está fora da agenda é se são possíveis reformas econômicas profundas em só um país. Ominami vê a Europa também em dificuldades, com integração monetária sem integração fiscal e com redução do espaço social integral.
"Se perdeu a ocasião de ter um ponto de referência importante no mundo. O grande drama é que a socialdemocracia não foi capaz de se impor à globalização. Embora seja de direita, o novo presidente francês tem uma tentativa de propor algo para a Europa, recompondo o motor franco-alemão. Mas hoje, de realmente distinto no mundo temos a China. Daqui a 10 anos, é provável que seja a grande potência. Entretanto, o que se tem lá é basicamente um capitalismo de Estado, muito dinâmico, muito autoritário e muito desigual. Há, portanto, a necessidade de gerar uma força política capaz de fazer surgir novos processos", reflete. Para Ominami, os processos políticos da esquerda não podem mais ser construídos sob a liderança de um único líder, algo que tem ocorrido em todos os países e invariavelmente acaba mal. "Outro fator é ser intransigente com as práticas políticas ruins. Não dá para contemporizar, ser tolerante com sistemas podres. Se paga muito caro por isso. Já no campo econômico, é necessário urgentemente libertar-se da dependência da produção primária", defendeu.
Finalmente, Ominami elencou interrogações que possam ampliar a sugestão do tema da palestra, ou seja, compreender qual a identidade da esquerda. "Saber quem somos, a esquerda, o progressismo, não é uma questão puramente semântica. Precisamos saber de que lugar, de que modo, vamos vencer o desafio das desigualdades, que faz parte do DNA da esquerda. Mas junto ao desafio da desigualdade há outras questões igualmente urgentes e importantes. A democracia é uma delas. A cultura da esquerda na questão democrática é complexa. Temos o desafio ecológico, há um desafio ambiental, de sustentabilidade, que precisa ser enfrentado. Temos ainda o desafio de gênero, porque ainda há uma esquerda com tendências machistas. E temos uma esquerda muito vinculada à cultura estatal, pouco aberta à inovação", opinou.
Ominami tende a pensar que, apesar de ser ambíguo, o progressismo é um terreno favorável para responder a todos esses desafios. "A ideia que defendo é a de um progressismo não como uma esquerda light, mas que recupera espaço. Precisamos definir se estaremos na vanguarda ou na retaguarda, em que posição vamos enfrentar as coisas". Sobre o processo de alianças, Ominami lembrou que, na tradição da esquerda, a principal aliança social se dá com a classe trabalhadora, historicamente na superação do capitalismo. Contudo, há uma problemática antiga das relações da esquerda com os setores médios que precisa ser analisada. "Por que não somos capazes de sintonizar com essas camadas médias?", questionou: como esses novos processos políticos devem se organizar? As forças partidárias que são originárias do século XIX vão sobreviver e serão a forma de organização no século XXI?
Ominami propôs uma espécie de decálogo para pensar essa nova identidade da esquerda no século XXI: 1) radicalmente democrática; 2)laica; 3) solidária socialmente; 4) vinculada à sociedade; 5) verde; 6) feminista; 7) meritocrática; 8) aberta ao mundo; 9) inovadora e 10) transparente.
O INP é uma instituição social, sem fins lucrativos, que busca contribuir com o aperfeiçoamento das instituições democráticas brasileiras através da abertura e promoção de espaços públicos de reflexão e debates e do incentivo à produção intelectual de sua rede de colaboradores (www.novosparadigmas.org).
(*) Diretora de Comunicação do INP.