domingo, 1 de janeiro de 2017

O vocabulário da luta

Este texto é um subsídio para que nossos militantes reflitam sobre as várias mediações que existem entre nossa ação cotidiana e nossos objetivos de longo prazo.

Militância

Frederico Engels -- socialista alemão que escreveu com Karl Marx o famoso Manifesto Comunista, publicado em 1848 -- dizia que um trabalhador consciente possui três tarefas permanentes: estudar, organizar e lutar.

Vladimir Lenin -- principal dirigente da Revolução de Outubro de 1917 -- dizia que o segredo da vitória da classe trabalhadora estava na capacidade de ação coletiva.

Estudo, organização e luta coletiva: estes são os três aspectos que integram a ação de cada trabalhador e de cada trabalhadora consciente.

Estudar, organizar e lutar coletivamente, de forma cotidiana e permanente, é o que faz das pessoas militantes.

Militância implica em convencimento individual, engajamento individual e responsabilidade individual.

Mas uma "uma andorinha só não faz verão".

A ação da classe trabalhadora só tem êxito quando dezenas, centenas, milhares, milhões de trabalhadores e de trabalhadoras se engajam, se convertem em militantes.

Os motivos que levam um indivíduo a se engajar são os mais variados: por exemplo, a influência familiar, a influência dos vizinhos, a influência dos colegas de trabalho. Acontece muitas vezes de uma pessoa ser envolvida pelos acontecimentos, no início sem entender direito o que está ocorrendo.

Mas por quais motivos milhões de trabalhadores e de trabalhadoras se engajam na luta?

Em certo sentido, os motivos que levam milhões de pessoas a se engajar na luta constituem a somatória de milhões de motivos individuais.

Mas há uma diferença importante.

Todo dia alguns indivíduos despertam para a luta. E todo dia, alguns indivíduos abandonam a luta, “adormecendo”.

Mas existem momentos na história de um país ou do mundo em que milhões, dezenas ou até centenas de milhões de pessoas “despertam” ao mesmo tempo.

Isto não ocorre sempre. E quando acontece, constitui um fenômeno muito mais intenso e qualitativamente superior ao simples despertar individual, que ocorre todos os dias e que muitas vezes é neutralizado pelo “adormecimento” individual de tantas outras pessoas.

Em geral, o que motiva o despertar simultâneo de milhões e dezenas de milhões ao mesmo tempo é uma agressão praticada pelos ricos e poderosos, algo que passa da conta, algo que ultrapassa os limites do tolerável, do aceitável, do suportável, do “sempre foi assim e sempre será assim”.

Quanto milhões, dezenas de milhões ou até centenas de milhões de trabalhadores e de trabalhadoras passam a estudar, organizar e lutar coletivamente, é porque chegou a hora em que as grandes mudanças políticas, sociais e econômicas podem tornar-se realidade.

Para falar de outra forma: as grandes reformas e as grandes revoluções sociais ocorrem quando as “massas” de ontem tornam-se as militantes de hoje.

Massas

A palavra “massas” é um termo que deve ser utilizado com muito cuidado.

Massa é um tipo de alimento muito típico na gastronomia italiana, que para ser comestível deve primeiro ser cozinhado em água fervente, transformando o sabor, a textura e a forma.

Em espanhol, o termo equivalente a massa é pasta.

Um dos significados da palavra pasta em português é uma mistura de algum pó (por exemplo, farinha) com um líquido (por exemplo, água, leite ou óleo), resultando daí um estado físico intermediário.

Uma massa de bolo, por exemplo, que poderá ser comida depois de batida e levada ao forno para cozinhar.

A palavra massa também é utilizada nas ciências, designando a quantidade de matéria presente em um corpo.

Existe uma unidade padrão para medir a massa, que é o quilograma. A massa não se altera, mas o peso pode se alterar a depender da força da gravidade.

Como ficou claro pelos exemplos acima, tanto na culinária quanto na física, as “massas” são inertes e transformadas por uma ação externa: a gravidade, a temperatura, a mistura com outros ingredientes.

Por isto, quando estamos falando de pessoas, usar o termo “massas” pode ser interpretado como uma atitude de desprezo e também de desconsideração da diversidade.

Afinal, as “massas” populares têm uma grande diversidade de histórias, hábitos, culturas, sexos, idades, etnias e opções.

Esta diversidade é um fator importante para compreender como reage cada setor das “massas” a um mesmo estímulo “externo”. Explica, portanto, a transformação ou não, em que ritmo e profundidade, das pessoas em militantes.

Ou seja: quando estamos falando de pessoas, as “massas” são heterogêneas. Elas possuem um nível de diversidade e autonomia totalmente diferente das “massas” do mundo físico e gastronômico.

Isto tudo deve ser levado em conta por quem deseja utilizar a palavra “massas”.

Isto é importante, entre outros motivos porque a pessoa que hoje é militante precisa lembrar sempre que algum dia foi parte da “massa”.

Sendo muito comum, aliás, que os militantes surgidos nos momentos de grande radicalização das massas, serem também mais radicais nos propósitos e tenham mais “urgência” do que os militantes que despertam para a luta nos momentos mais mornos da luta de classes.

Motivo pelo qual o militante que se julga “vanguarda” hoje, pode ser ultrapassado amanhã pelas “massas” de ontem.

Quem já é militante deve trabalhar para que um número cada vez maior de pessoas estude, organize e lute.

E para atingir este objetivo, é preciso saber lidar com as pessoas que não são militantes, é preciso saber trabalhar com as pessoas que são “massa”, aprender os processos e ritmos através dos quais evoluiu o nível de consciência das pessoas.

Relação militância e massa

Muitos militantes gostam de ser chamados de “vanguarda”.

Na terminologia militar, vanguarda é o destacamento que segue na frente, que primeiro entra em choque com os inimigos.

Na terminologia política, vanguarda é a organização que indica o rumo da luta e que dirige os outros.

Já nas artes, na moda e na vida cotidiana, vanguarda é a pessoa ou o grupo que inaugura novas estéticas e adota novos comportamentos.

Evidente, é muito fácil falar e é muito difícil ser vanguarda. A maioria dos que se acham “vanguarda” não têm ninguém na sua retaguarda, além de muitas vezes defenderem ideias e repetirem comportamentos ultrapassados.

Para complicar, só dá para ter absoluta certeza sobre se uma corrente política é mesmo vanguarda, depois que muita água passar por debaixo da ponte. Até porque as vanguardas não nascem, elas se formam no curso do processo.

Por este motivo, sugerimos adotar a palavra vanguarda num sentido mais básico: a militância que se dedica, de maneira cotidiana e permanente, a trabalhar para que um número cada vez maior de pessoas estude, organize e lute.

Se esta militância tiver êxito no seu trabalho cotidiano, quando ocorrer de milhões de pessoas despertarem para a luta, estes milhões terão um ponto de apoio fundamental.

Se nos momentos normais da luta de classe a militância tiver êxito no seu trabalho de estudar, organizar e lutar, então nos momentos mais quentes da luta de classe, quando milhões despertarem simultaneamente, as chances de vitória serão maiores.

Dito de outra forma: a melhor vanguarda é aquela que se dedica a organizar as massas.

Mas há diferentes maneiras de fazer isto. Há quem consuma todas as suas energias no trabalho de base, sem enfatizar os vínculos entre este trabalho de base e os objetivos de longo prazo, a visão de mundo que nos anima e às organizações que a classe trabalhadora.

O vocabulário da luta

Para organizar melhor e lutar do jeito certo, é fundamental que as vanguardas estudem (compreendendo por estudar não apenas tomar contato com conhecimento já produzido, mas também investigar a realidade e produzir conhecimento novo).

Estudar quem somos, pelo que lutamos, contra o quê e contra quem lutamos; aprender com quem lutou antes de nós e com os que lutam em outras regiões do Brasil, da América Latina e do mundo.

Responder as velhas questões e também as novas questões.

Estudar é trabalhar; e trabalhar exige disposição, esforço e técnica.

Um dos aspectos técnicos envolvidos no estudo é o domínio da linguagem.

Cada profissão tem seu vocabulário, um conjunto de termos que os trabalhadores daquela profissão utilizam para se comunicar.

Qual é o vocabulário da militância? Quais os termos, as palavras, as categorias, os vocábulos utilizados pela classe trabalhadora na luta por seus interesses?

Como sempre acontece, o verbo surge da ação, da vida cotidiana da classe, das lutas que ela desenvolve, muitas vezes tomando as palavras de empréstimo das demais classes (assim como tomamos palavras de empréstimo de outros povos, de outras línguas e de outras épocas).

Um bom exemplo disto é a palavra greve.

Segundo alguns estudiosos, a palavra tem origem latina, designando areia ou cascalho. Estes estudiosos nos informam que a Place de Grève (Praça da Greve) ficava em Paris, à beira do rio Sena, num ponto em que se acumulava areia e cascalho. Nesta praça reuniam-se trabalhadores que estavam sem trabalho, à busca de um emprego. Mais adiante, o termo será empregado não para designar trabalhadores em situação passiva (parados por falta de um empregador), mas sim trabalhadores em situação ativa (parado contra seus empregadores).

O vocabulário da luta é atualizado de forma permanente.

Certas palavras vão mudando de significado. Outras palavras possuem diferentes significados, a depender do país, do momento da história, do setor da classe que as utiliza.

Por exemplo: governo e poder.

É muito comum ouvirmos algumas pessoas falarem que “Hugo Chavez chegou ao poder em 1998”, “Lula chegou ao poder em 2002”.

Ao que outras pessoas respondem: “nunca chegamos ao poder, apenas conquistamos o governo”.

E outras lembram, ainda, que não basta que um partido chegue ao poder, é necessário que a classe trabalhadora chegue ao poder.

Por trás destas três frases e de suas variantes, há visões distintas acerca do que seja a política, o poder, o Estado, o governo e os processos eleitorais, a relação entre os partidos e as classes etc.

A prática como critério do vocabulário

Um dos desafios que enfrentamos, quando se trata de estudar, é dominar o vocabulário “técnico” com o qual descrevemos a luta e planejamos nossa intervenção nela.

Há várias maneiras de fazer isto. A que consideramos mais adequada é a que toma como referência -- como “critério da verdade” -- a realidade.

Ou seja: cada um pode “significar” como quiser termos como classes sociais e luta de classes, Estado e política, partidos e sindicatos, conjuntura, tática e estratégia.

Mas para que haja diálogo e ação comum, é preciso que muitas pessoas signifiquem da mesma forma. Ou seja, é preciso que muitas pessoas entendam da mesma forma determinados termos.

E para que isto seja possível, é preciso que aqueles termos expressem algo em comum para muitas pessoas. E este “algo em comum” é, em última análise, a realidade, a prática social, a ação e o produto da ação de dezenas e centenas de milhões de pessoas.

Com um detalhe importante: a realidade social se transforma o tempo todo. E esta transformação ocorre antes de ser traduzida em palavras, em conceitos, em categorias, termos e vocábulos. Por isto é comum que utilizemos palavras antigas (que designam fenômenos passados) para denominar acontecimentos do “presente” e previsões que fazemos sobre o futuro.

Como dizia um poeta alemão, a coruja do conhecimento alça voo ao anoitecer. As palavras que utilizamos para falar do presente e do futuro tiveram origem no passado e designavam originalmente realidades passadas.

Um exemplo disto: a palavra utopia. O termo é de origem grega: u-topos, não lugar, um lugar que não existe. Foi utilizado como título para um livro publicado por volta de 1516 (há 500 anos, portanto).

Naquele livro, Thomas Morus criava um personagem que descrevia uma sociedade existente em uma ilha a qual chegara através de um naufrágio. Portanto, uma sociedade que era contemporânea aos personagens do livro e também aos leitores do livro.

Pois bem: desde o século 19 até hoje o termo utopia é muito utilizado para designar uma sociedade... futura!!!

Aqui se faz necessário falar de um “detalhe” importante: a ação humana faz parte da realidade, tanto como observadora quanto como construtora da realidade.

Se muitos humanos acreditarem em algo e organizarem-se em função desta crença, isto gera uma realidade, mesmo que aquela crença seja fantástica, ficcional, artificial, ilusória, um mito. As ideias, quando são incorporadas por muita gente, convertem-se em força material.

Aliás, um filósofo alemão do século 19 dizia que não foi Deus que criou o homem, foi o homem que criou Deus.

Noutras palavras: os seres humanos criaram vários deuses, igrejas e doutrinas que serviram como linguagem para expressar determinados interesses sociais durante muitos séculos. Os deuses podem não existir, mas as igrejas e os movimentos religiosos existem, assim como existem e atuam aquelas milhões de pessoas que são crentes.

Vocabulário e classe social

Antes de existir o vocabulário da luta da classe trabalhadora, existiu o vocabulário da luta dos burgueses.

Antes disto, o vocabulário que expressava os interesses dos senhores feudais (e também dos que se opunham aos feudais) era um vocabulário religioso.

Foram as revoluções burguesas (nos séculos 17, 18 e 19) que “criaram” um vocabulário político laico.

Entre 1789 e 1917, a classe trabalhadora de todo o mundo utilizou um vocabulário político surgido principalmente da revolução francesa de 1789.

O exemplo clássico disto: as palavras esquerda e direita, bem como a expressão partidos políticos.

A revolução francesa, por sua vez, foi buscar estes e outros termos políticos na antiguidade grego-romana. Por exemplo: democracia, república e proletariado.

Mas também resgatou e adaptou termos utilizados por movimentos religiosos, econômicos e políticos dos séculos anteriores!!!

Partindo do vocabulário surgido da grande revolução francesa de 1789, o movimento da classe trabalhadora ao longo do século 19 foi “criando” -- o que geralmente significa resignificar e/ou customizar -- seus próprios termos.

É o caso de palavras como greve, proletariado, socialdemocracia, trabalhismo, anarquismo, populismo, cooperativismo, socialismo e comunismo.

Com a revolução russa de 1917 surgiu um novo paradigma: até então, o vocabulário político tinha como referência a revolução francesa de 1789. A partir de 1917, passou a existir uma nova referência.

Processo semelhante ocorreria com outras revoluções, que pelo seu impacto na realidade converteram-se em fonte de transformação, de inspiração, foram tomadas como modelo ou exemplo.

A partir de 1917 e até hoje, o vocabulário da luta continuou mudando.

Mudanças no capitalismo, mudanças na luta da classe trabalhadora, surgimento (ou reconhecimento da existência) de outros setores sociais e de outras questões, diferentes tentativas de transição socialista, além de muitas derrotas, todas estas novidades se expressaram em palavras velhas ou novas, assim como em inventos como é o caso do termo neoliberalismo.

Portanto, estudar o vocabulário da luta não é a mesma coisa que estudar matemática básica. Podemos dizer que é mais parecido com o estudo da literatura ou da pintura, em que uma mesma obra pode gerar diferentes percepções e avaliações, sendo sempre necessário distinguir entre os aspectos “objetivos” e os aspectos “subjetivos” da obra.

E poucas vezes é possível chegar a um acordo, embora seja possível pelo menos entender o que cada um quer dizer.

Com todos estes cuidados, quais são os termos fundamentais que precisam ser conhecidos por quem deseja organizar melhor e lutar melhor? Que vocabulário básico precisa ser dominado pelos militantes, lutadores, revolucionários?

Alguns dos termos essenciais são: classes sociais, luta de classes, formação social, modo de produção, Estado, politica, partido político, reforma, revolução, estratégia, tática, conjuntura.

Não há definições universais para cada um destes termos. O que veremos a seguir é -- mais que um dicionário – um guia para estudo.

Classes sociais

O que diferencia os seres humanos de outros animais? Fundamentalmente a capacidade de transformar a natureza, ou seja, o trabalho.

Temos aqui uma interessante história, que envolve o uso da mão; a extensão da mão em ferramenta; a ferramenta combinada com a ação coletiva, convertendo um animal fisicamente frágil em um caçador poderoso; a coleta e a caça convertendo-se pouco a pouco em criação e reserva; o desenvolvimento de novos conhecimentos e novas ferramentas, como o fogo; a constituição de agrupamentos cada vez mais numerosos e uma crescente divisão de trabalho entre os integrantes deste agrupamento.

Em algum ponto desta história originária, a divisão de funções técnicas serviu de base para uma divisão social mais permanente, que nos acompanha até hoje: a divisão entre produtores e proprietários.

Resumindo de outro jeito a mesma trajetória: os dois elementos básicos de qualquer sociedade são as relações que os seres humanos estabelecem entre si e as relações da humanidade com a natureza, para produzir e reproduzir suas condições de existência.

Note-se que os seres humanos se convertem em seres humanos, na medida em que agem socialmente, em comunidade, em humanidade.

As relações que os seres humanos estabelecem entre si no processo de produção podem ser de cooperação e subordinação. Que por sua vez desdobram-se em conflitos e lutas.

Ou seja: as relações que os seres humanos estabelecem entre si, no processo de produção, envolvem simultaneamente cooperação, subordinação e conflito.

Ao longo da história, estes tipos estiveram presentes em proporções que foram variando.

Numa fábrica moderna, por exemplo, existe alto nível de cooperação entre os trabalhadores (e em alguma medida também entre estes e os capitalistas). Ao mesmo tempo há alto nível de subordinação dos trabalhadores aos capitalistas. E, portanto, graus variados de conflito entre os trabalhadores e os capitalistas, indo das reclamações às sabotagens, das greves a outros atos de insubordinação.

Na sociedade atual, não sobreviveríamos sem água e energia elétrica, que são produto de um alto nível de cooperação, de subordinação e de conflito. Como sabemos, em sociedades tecnicamente capazes de produzir e fornecer água e luz para todos/as, o acesso não é universal.

O acesso à água depende de diferentes níveis de cooperação e subordinação, conflito e luta, tanto na produção quanto na distribuição.

É importante lembrar sempre que as relações humanas não se limitam ao processo de produção e reprodução das condições materiais de existência.

Mas como não existe sociedade sem produção, as relações de produção constituem as relações fundamentais, que influenciam todas as demais.

Ao longo da história, podemos identificar vários tipos de relações de produção.

As mais comuns foram a escravidão, a servidão e o assalariamento.

Embora seja óbvio, vale lembrar: uma relação de produção é uma... relação, uma unidade de contrários: se há escravidão, há escravizados e senhores de escravizados; se há servidão, há servos e senhores; se há assalariamento, há trabalhadores assalariados e capitalistas.

Qual o nome que damos para estes “partes”, estes grupos de pessoas que ocupam um mesmo lugar numa determinada relação social de produção? Classes sociais.

E qual o nome damos para a relação que estes grupos sociais estabelecem entre si? Luta de classes.

Esta luta se exprime das mais diversas maneiras e nos mais diferentes espaços.

Quando um patrão e um empregado firmam um contrato, há luta de classes. No processo de produção – inclusive na definição sobre o direito de ir ao banheiro -- há luta de classes.

A luta de classe também está presente nas definições públicas e privadas que decidem como será o transporte do trabalhador até sua casa, como serão suas condições de moradia, de saúde, de educação, de cultura e lazer.

De igual maneira, a luta de classes está presente nas lutas sindicais, nas batalhas eleitorais, nas definições de governo e parlamentares, em cada ato cotidiano da vida pública e também da vida privada. Inclusive nas telenovelas, nas missas, no esporte.

As pessoas podem ou não ter consciência dista, mas numa sociedade dividida em classes sociais, tudo que fazem ou deixam de fazer está atravessado pela luta de classes.

Ao longo da história não existiram sempre as mesmas classes sociais, portanto a luta de classes nem sempre foi a mesma.

Claro que há semelhanças: os escravizados, os servos e os assalariados têm em comum o fato de serem produtores subordinados à exploração dos proprietários. Da mesma forma, senhores de escravizados, senhores de terra e senhores de capital têm em comum o fato de serem proprietários não-produtores que exploram os produtores diretos.

Mas há diferenças muito importantes, motivo pelo qual falamos que há não apenas diferentes classes, mas sociedades diferentes, modos de produção diferentes.

Um exemplo destas diferenças: o escravizado era tratado como propriedade, o assalariado é considerado uma pessoa livre.

Outro exemplo destas diferenças: em geral, o escravocrata compra e vende tanto os trabalhadores quanto os bens materiais produzidos por eles; o senhor feudal não é dono dos servos da gleba, mas se apropria da maior parte do que eles produzem; o capitalista se apropria da maior parte do valor produzido pelo assalariado para acumular e reproduzir, de forma ampliada, o... capital.

Numa mesma sociedade, podem coexistir diferentes tipos de cooperação, subordinação e conflito. É o predomínio de uma determinada combinação destas variáveis que define a sociedade como um todo.

Exemplo: no Brasil, por volta de 1850, era a exploração do trabalho escravo, a dificuldade em continuar importando “peças escravas”, as fugas e revoltas, a organização de quilombos e o abolicionismo que determinavam o curso geral da sociedade.

Já no Brasil, por volta de 1950, era a exploração do trabalho assalariado, as reivindicações, lutas e greves dos trabalhadores, e a repercussão disto junto aos demais setores, que determinavam o curso geral da sociedade.

Tanto num caso como noutro, ao lado da escravidão e do assalariamento, respectivamente, existiam outros tipos de relações de produção. Mas havia uma relação que era dominante. Noutras palavras, havia um modo de produção que era dominante.

Falamos em modo de produção comunista primitivo, modo de produção escravista, modo de produção feudal e modo de produção capitalista exatamente para deixar claro qual a relação de produção que predomina (e, por decorrência, que tipo de cooperação/subordinação/conflito predomina).

Mas devemos sempre lembrar que nas sociedades realmente existentes, é comum encontrarmos vários modos de produção coexistindo. E não apenas isto: em sociedades onde predomina um determinado modo de produção, é comum encontrarmos este modo de produção existindo sob diferentes formas.

Por exemplo, um capitalismo predominantemente agrário, ou predominantemente industrial, ou predominantemente financeiro etc.

Tanto em 1950 quanto em 2016, o capitalismo é o modo de produção predominante nos EUA, Inglaterra, Brasil e Índia (em todos predomina a exploração do trabalho assalariado), mas nestes quatro países há sociedades com semelhanças mas também com muitas diferenças.

Nas sociedades onde predomina o modo de produção capitalista, é comum encontrarmos outras classes sociais, além dos casos extremos de proprietários capitalistas não-produtores  e produtores assalariados não-proprietários.

Por exemplo, os artesãos de ontem e os pequenos-proprietários urbanos e rurais de hoje.

Assim como é comum encontrarmos grandes diferenças no interior das duas classes sociais fundamentais. Diferenças tão grandes, que muitos autores tratam uma fração da classe trabalhadora, como se fosse uma classe social autônoma: a “classe média”.
Para dar conta destas diferentes combinações, dessas diferenças que existem entre sociedades em que predomina um mesmo modo de produção, é que utilizamos o termo formação social (alguns preferem falar de formação socioeconômica).

Por exemplo: a formação social de qualquer país da América Latina na primeira metade do século 20 é diferente da formação social existente neste mesmo país nos dias de hoje.

Importante perceber que os conceitos de modo de produção e de formação social “derivam” dos conceitos de classe e luta de classes.

Dizendo de outra maneira: são as relações de produção que os seres humanos estabelecem entre si, para produzir e reproduzir as suas condições materiais de existência, portanto são as classes sociais e a luta de classes que existem em cada época e lugar, que definem qual “formação social” existe e qual “modo de produção” predomina.

Por isto, a questão básica que deve ser respondida sempre é: quais são as classes e como lutam entre si? Pois uma classe social nunca existe sozinha. Se todas as pessoas fizessem parte de uma única classe, não haveria classes nem luta de classes...

Estado e luta de classes

Onde há classes, há luta de classes. Notem que isto é diferente de falar que “onde há tribos, há luta pelo controle do território”.

Nas épocas originárias, havia luta entre os seres humanos, por exemplo entre as diferentes tribos.

Mas esta luta era diferente da luta de classes, que surgiu quando as sociedades se dividiram internamente entre produtores não-proprietários e proprietários não-produtores.

Quando uma sociedade está dividida em classes, isto significa dizer que uns exploram outros. E para que a exploração se converta em parte normal da vida cotidiana, é preciso que haja “argumentos” fortes para que prevaleça um determinado ponto de vista: o controle das armas e o controle das mentes, sendo que este último inclui a inexistência (ou desconhecimento) de alternativa melhor.

Ao longo de séculos, as diferentes classes dominantes desenvolveram mecanismos, instrumentos, discursos, hábitos voltados a converter a exploração e a dominação em parte do cotidiano. O “estado normal” das coisas seria a divisão entre ricos e pobres, senhores e escravos...

Deste processo milenar surgiu o que hoje chamamos de Estado, uma instituição construída pela luta entre as classes sociais, uma instituição que foi pouco a pouco assumindo um duplo propósito:

a) impedir que os conflitos inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos paralisem esta sociedade;

b) ao fazer funcionar uma sociedade dividida em classes, perpetuar esta divisão em benefício dos interesses essenciais da respectiva classe dominante.

Há tantos Estados quanto há sociedades.

Podemos, para fins didáticos, falar em Estado escravista, Estado feudal e Estado capitalista. Mas é preciso ter claro que estas palavras expressam algo tão óbvio quanto saber qual a cor do cavalo branco de Napoleão. Ou seja: cada tipo de ordem social é protegida por um determinado tipo de Estado.

Mais importante do que saber isto é conhecer como a classe dominante faz, em cada sociedade concreta, para proteger seus interesses essenciais.

Dito de outra forma: como faz para impedir que a luta de classes -- inerente e inevitável em uma sociedade dividida por interesses de classe antagônicos – prejudique os interesses da classe dominante.

A resposta é intuitiva: através da cooperação e da subordinação.

Utilizando outras palavras: através do convencimento e da dominação. Ou ainda: através das palavras e das armas.

Como por definição os dominados são sempre em maior número, a forma “normal” de fazer uma sociedade funcionar “em tempos normais” precisa estar baseada no convencimento dos dominados pelos dominantes.

Para usar outros termos, a forma “normal” de fazer uma sociedade funcionar tem que estar baseada no consentimento, na hegemonia, no convencer as maiorias a seguir as opiniões das minorias.

Em tempos normais, o método normal não pode ser a subordinação explícita, a dominação, a repressão militar.

Portanto, se queremos entender como uma classe dominante prevalece por tanto tempo sobre um número incrivelmente maior de pessoas, é preciso conhecer os mecanismos através dos quais a classe dominante consegue que uma maioria de explorados aceite, tolere e coopere com sua própria exploração.

Aqui se faz necessário compreender a força do hábito (“sempre foi e sempre será assim”), o papel do racismo (“naturalizando” a inferioridade de um setor social frente a outro), o papel das religiões oficiais (definindo hierarquias e estimulando o conformismo), o papel da cooptação (confrontar africanos escravizados contra indígenas, brancos pobres contra escravizados negros, trabalhadores locais contra migrantes, trabalhadores homens contra mulheres etc.), o papel do medo (inclusive o medo da fome).

Estes e outros mecanismos vão se tornando mais sofisticados e poderosos, à medida que o tempo vai passando.

Basta pensar no que era o Estado escravista e compará-lo com o Estado capitalista, ou pensar no Estado existente nos tempos da colônia e o Estado existente hoje.

Por qual motivo o Estado foi se tornando mais sofisticado e poderoso, seja no que diz respeito aos mecanismos de convencimento, seja no que diz respeito aos mecanismos de dominação?

Entre outros motivos porque a sociedade se tornou mais complexa, tornando cada vez mais difícil impedir que os conflitos de classe paralisem esta sociedade.

Evitar que a sociedade capitalista seja paralisada pelas crises do próprio capitalismo exige cada vez mais Estado, exige o que chamamos de um “Estado ampliado”, mesmo que este Estado sirva essencialmente para cobrar tributos e transferir recursos para o capital financeiro.

Acontece que a ampliação do Estado -- ampliação indispensável para que ele possa cumprir o papel de estabilizar o funcionamento de uma sociedade cada vez mais conflitiva – tem aspectos que são, em si mesmos, potencialmente conflitantes com o objetivo de usar o Estado para beneficiar os interesses essenciais da respectiva classe dominante.

De maneira geral, o Estado capitalista é mais “ampliado” que o Estado feudal e o Estado escravista. Também de maneira geral, o Estado capitalista no século 21 é mais ampliado do que o Estado capitalista no século 19.

Parte desta ampliação implica em contratar um grande número de funcionários públicos, que não têm origem na classe dominante. O que introduz contradições.

Basta pensar na diferença de comportamento entre as cavalarias formadas por nobres, as tropas formadas por mercenários e os exércitos formados por alistamento.

Outra parte da ampliação do Estado consiste em dar a outras classes sociais os meios de interferir em algumas decisões do Estado, por exemplo: elegendo presidentes, parlamentares e juízes.

Óbvio que este tipo de ampliação introduz contradições no papel do próprio Estado.

A ampliação do Estado deixa cada vez mais clara a diferença entre duas dimensões da ação estatal: aquela destinada a fazer funcionar uma sociedade cada vez mais complexa e coletiva (por exemplo, o SUS, a educação pública, o controle de trânsito) e aquela destinada a preservar os interesses da classe dominante (as forças armadas, as polícias, o judiciário).

A ampliação do Estado, além de deixar cada vez mais claras aquelas duas dimensões, reforça a contradição entre elas.

Esta contradição se manifesta de maneira mais aguda nos períodos de crise e/ou de baixo crescimento econômico.

Nestes períodos, os recursos são escassos e a luta por eles é maior. Por exemplo: mais impostos ou menos impostos? Impostos para pagar juros ou para financiar políticas sociais?

Esta contradição potencial se manifesta também quando o eleitorado dá vitória a governos e parlamentos contrários, em maior ou menor medida, ao status quo.

Quando isto acontece, ficam claras as diferentes interpretações que cada setor da sociedade dá para o termo democracia.

Esta palavra tem um significado muito forte para a maioria das pessoas, significado geralmente carregado de significados positivos.

Democracia seria o governo da maioria, portanto o oposto de uma ditadura.

Mas quando observamos ao longo da história, veremos que nem sempre foi assim.

Na origem, aliás, democracia era o governo dos homens proprietários de escravos.

E durante muito tempo, não se exigia de um governo democrático que fosse democrático para todos, pois durante parte do século 19 e 20, o “povo cidadão” não incluía todos os habitantes adultos.

À medida que a luta da classe trabalhadora foi conquistando o direito de votar e ser votado extensivo a todos as pessoas adultas, homens e mulheres, independente de raça, religião e propriedade, a classe dos capitalistas foi agindo para impedir que este direito universal de voto afetasse seus interesses fundamentais.

Esta ação dos capitalistas consiste, por exemplo, em desestimular a participação política, criar dificuldades para o registro eleitoral, corromper o processo através do dinheiro e da mídia, cooptar os partidos e os eleitos de esquerda, sabotar os governos de orientação popular e, no limite, praticar magnicídios e golpes de Estado.

Ou seja: a democracia existente no capitalismo é plenamente democrática apenas para uma parte da sociedade. Para a classe dominante, existe muita democracia. Para a classe dominada, existe pouca democracia. O que, especialmente nos momentos de crise, pode ser dito assim: em alguns momentos e para alguns setores sociais, a democracia capitalista não passa de uma ditadura dos capitalistas.

Esta constatação traz muitas implicações para a ação política dos partidos vinculados à classe trabalhadora.

A principal implicação é a seguinte: os partidos ligados aos capitalistas não lutam pelo poder, pois eles já o possuem.

Os partidos capitalistas são instrumentos para ajudar na gestão dos negócios do Estado, um dos instrumentos para selecionar o pessoal que vai gerir a máquina estatal. E nem sempre são o instrumento principal.

Na história de países como o Brasil, a Venezuela e a Argentina, por exemplo, as forças armadas e as grandes empresas de comunicação já demonstraram ter, em algumas situações, maior importância do que os partidos.

Já os partidos ligados à classe trabalhadora estão diante de uma disjuntiva.

Podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a participar da gestão da máquina do Estado; ou podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a se converter em poder de Estado.

Claro que na luta cotidiana, não há contradição absoluta entre estes dois objetivos.

Quem luta contra o capitalismo pode e deve, também, lutar por melhorar a vida aqui e agora, inclusive os salários, as condições de trabalho. Assim como pode e deve lutar por reformas democráticas, ou democrático-burguesas (agrária, urbana, política, sanitária, educacional, tributária).

Mas também pode e deve lutar pelo fim do capitalismo, o que conduz a lutar por reformas mais profundas, democrático-populares e socialistas (que incluem a supremacia popular sobre o Estado, a supremacia das empresas estatais nas áreas econômicas estratégicas, a orientação do Estado sobre o mercado e sobre o conjunto do desenvolvimento econômico e social, a hegemonia da orientação democrático-popular na educação, saúde e outros serviços e questões sociais).

Mas embora as duas dimensões citadas nos parágrafos anteriores possam ser combinadas -- ajudar a classe trabalhadora a participar da gestão da máquina do Estado e ajudar a classe trabalhadora a se converter em poder de Estado -- existe sempre uma contradição potencial entre os dois objetivos (governo e poder), pois no limite eles podem corresponder a metas diferentes: reforma ou revolução, capitalismo ou socialismo.

E os caminhos que levam a uma e a outra meta não são exatamente os mesmos, fato que fica claro no dia-a-dia, mas principalmente nos momentos de crise aguda da sociedade.

Por exemplo: aqueles que têm como objetivo final lutar por reformar o capitalismo, tendem a se integrar aos mecanismos do Estado.

As eleições se convertem no seu objetivo principal, seus partidos passam a ser financiados da mesma forma que os partidos burgueses, a vida interna de suas organizações vai ficando cada vez mais tradicional e seu programa é influenciado cada vez mais pelos capitalistas e seus interesses.

Mas atenção: não se deve medir ninguém, partido ou pessoa, pelo que ela diz ou acha de si mesma. A prática é o critério da verdade.

Assim, às vezes acontece o seguinte: partidos que dizem que tem como objetivo final a revolução e socialismo, mas na prática ase limitam a lutar por reformar o capitalismo. E como é assim, acabam também se integrando aos mecanismos do Estado.

Por isto o debate estratégico é tão importante: para escolher os caminhos a seguir, na luta de classes.

Estratégia em debate

Entre os que valorizam as experiências dos governos progressistas e de esquerda iniciada em 1998, com a eleição de Hugo Chavez para a presidência da Venezuela, existem diferentes pontos de vista, que dizem respeito não apenas às estratégias passadas, mas também à qual deva ser a estratégia no período em que estamos e futuramente.

Estas diferentes visões às vezes são expressas num mesmo vocabulário (as pessoas concordam quanto ao significado das categorias, conceitos e termos, mas discordam no mérito); outras vezes são expressas através de vocabulários distintos, em que uma mesma palavra ganha significados distintos ou simplesmente não é adotada.

A palavra “estratégia” tem um significado originalmente militar, a saber: o conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma guerra.

Uma guerra é composta de várias batalhas. A estratégia é a maneira de articular entre si batalhas, com a finalidade de ganhar a guerra.

Já a tática é o conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma batalha.

O termo estratégia exige, portanto, uma definição preliminar: de que “guerra” estamos falando?

Responder a esta questão implica em definir inimigos, aliados e objetivos estratégicos.

No nosso caso, a “guerra” de que falamos é a luta entre a classe dos trabalhadores assalariados e a classe dos empresários capitalistas.

É legítimo falar de “guerra”, quando falamos da luta de classes entre trabalhadores e capitalistas?

Sim, não tanto para destacar o caráter violento da luta, mas principalmente para acentuar o componente de dominação envolvido no processo e, portanto, para deixar claro que se pretende alterar a relação fundamental entre as partes em luta.

Embora capitalistas e assalariados existam há mais tempo, foi nos séculos 19 e 20 que foi predominando, no interior de cada país e no conjunto do mundo, um tipo de sociedade baseado nas relações de produção entre aquelas duas classes.

Hoje o chamado capitalismo é dominante, em escala local e global.

Evidentemente, nem o capitalismo é determinado apenas pela relação entre capitalistas e assalariados; nem os destinos de cada sociedade e do mundo são determinados apenas pelos rumos do capitalismo.

Mas ambos os fenômenos (o capitalismo; a luta de classes entre capitalistas e trabalhadores) são variáveis fundamentais para compreender o conjunto dos conflitos sociais dentro de cada país e o conjunto dos conflitos internacionais.

Por isto é correto falar de uma classe determinada, ao invés de adotar expressões genéricas como “o povo”, “os explorados”, “os oprimidos” ou “os excluídos”.

Tais categorias genéricas expressam fenômenos reais, tem utilidade analítica e são muito úteis na retórica política, mas não são adequadas para precisar o conteúdo das definições estratégicas mais gerais.

Portanto, estratégia é o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolve para ganhar a guerra que trava contra a classe dos capitalistas.

A classe dos trabalhadores assalariados não é homogênea: sua formação (no duplo sentido: sua história e sua composição) varia de região para região, e varia de época para época.

Em cada momento dado, há ao mesmo tempo diferentes classes trabalhadoras assalariadas convivendo, assim como diferentes frações da classe trabalhadora assalariada convivendo.

Isto pode ser nítido em âmbito internacional (os trabalhadores assalariados de um país vis a vis os trabalhadores assalariados de outros países); mas também ocorre em plano nacional, o que nem sempre é devidamente considerado.

A saber: a classe trabalhadora assalariada possui diferentes “frações” internas, em função de fatores “objetivos” como a região, a idade, o sexo, o ramo de atividade; e em função de fatores “subjetivos” como a experiência adquirida na própria luta de classe.

Na prática, isto significa que quando nos referimos à “estratégia da classe dos trabalhadores assalariados”, estamos nos referindo à estratégia que defendemos deva ser assumida e praticada por esta classe, mas que nunca é a estratégia de todos os integrantes da classe, pois sempre haverá diferenças no interior da classe que resultarão em diferentes posições políticas, portanto diferentes estratégias.

A mais geral destas diferenças políticas existentes no interior da classe dos trabalhadores assalariados consiste no seguinte: em todo momento, o conjunto da classe está submetida à exploração, mas apenas uma parte da classe reage coletivamente a isto.

Quando ocorre, a reação coletiva pode ter dois propósitos fundamentais: o de melhorar as condições de vida da classe, nos marcos do capitalismo; e/ou o de “mudar de vida”, superando o capitalismo.

Ambos os propósitos (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”) exigem enfrentar o capitalismo. Os dois propósitos podem ser apresentados sob a forma de raciocínios estratégicos, que historicamente foram denominados como “estratégia reformista” e “estratégia revolucionária”.

Neste caso, a denominação -- “reformista”, “revolucionário” -- diz respeito ao objetivo final que se persegue, não aos caminhos utilizados.

É por isto que – na prática histórica – vemos pessoas que se definem como revolucionárias dedicando a maior parte do seu tempo militante à educação política, à luta sindical, à atividade parlamentar ou governamental.

E vemos, também, pessoas que se definem como reformistas envolvidas em guerrilhas, guerras de libertação nacional e outros tipos de mobilizações sociais e politicas extremamente radicais.

Há, no interior da classe trabalhadora, vários pontos de vista, vários objetivos estratégicos, portanto várias estratégias.

Estas estratégicas desdobram-se, em alguns casos, em alianças com outras classes. Por exemplo, alianças estratégicas com setores que mantém conflitos com o capitalismo, como é o caso dos trabalhadores que são pequenos proprietários, urbanos ou rurais, entre os quais também há quem se proponha enfrentar o capitalismo, seja para conviver com ele em melhores condições, seja para superá-lo.

Em tese, estas variadas estratégias podem ser concorrentes, mas não precisam ser inimigas, uma vez são estratégias adotadas por diferentes frações da classe dos trabalhadores assalariados.

Na prática, entretanto, ocorrem situações em que o conflito entre diferentes estratégias transforma-se num conflito frontal. É o caso, por exemplo, quando determinada estratégia conduz a alianças estratégicas com a classe dominante.

Diferentes estratégias

Sendo estratégia o nome que damos para o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para superar o capitalismo, então estas ações podem ser definidas como basicamente três: estudar, organizar e lutar.

O “estudar” significa fundamentalmente compreender o funcionamento do capitalismo e o que entendemos por superar o capitalismo.

Consideramos que este é um aspecto fundamental do debate estratégico.

A superação do capitalismo exige uma reorganização social profunda, tornando possível que aqueles que produzem a riqueza social decidam como produzir, o que produzir e como distribuir esta riqueza social. É isto que entendemos por socialismo e, portanto, quando nos referimos a superar o capitalismo estamos falando de construir o socialismo.

Aceita esta premissa, então estratégia é o nome que damos para o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para construir o socialismo.

Fica clara, nesta definição, que existe uma distinção formal entre o objetivo final (construir o socialismo) e a estratégia propriamente dita (o conjunto de ações).

Falamos de distinção formal, porque evidentemente há uma relação entre meios e fins.

No que diz respeito ao objetivo final, ele pode ser entendido de duas maneiras diferentes: 1) “construir o socialismo” como dar início à construção do socialismo; 2) “construir o socialismo” como construir uma sociedade socialista plena, portanto, superar completamente o capitalismo.

Esta distinção pode ser apresentada de duas maneiras, nos seguintes termos: 1) transição ao socialismo e socialismo pleno; 2) transição socialista e comunismo.

Pensar a estratégia tendo como objetivo final uma sociedade socialista plena (aquilo que Marx e Engels denominavam comunismo) nos colocaria diante do seguinte desafio: imaginar um processo em escala mundial, com a duração de várias décadas ou séculos.

Como isto seria tão genérico quanto não operacional, preferimos pensar a estratégia como uma conduta que tem como objetivo iniciar a construção do socialismo (ou, noutros termos, iniciar a transição socialista).

Portanto, entendemos por estratégia o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para iniciar a construção do socialismo. Ou, dito de outra forma: para poder dar início à transição socialista.

O que significa “construção do socialismo”?

Alguns compreendem que a construção do socialismo começa quando um trabalhador adere à sua organização coletiva de classe, quando a classe trabalhadora cria e fortalece estas organizações, quando a classe trabalhadora consegue vitórias concretas na luta contra os capitalistas, vitórias que podem ser econômicas, políticas, sociais, ideológicas, no plano nacional, regional ou mundial.

Outros compreendem que a construção do socialismo supõe não apenas estas atitudes e conquistas parciais, nos marcos do domínio capitalista, mas também alterações mais profundas, que só são possíveis quando parcelas fundamentais da vida social passem a ser controladas pela classe trabalhadora. O que supõe, em maior ou menor medida, que a classe trabalhadora detenha um poder econômico e político equivalente ao que hoje constitui monopólio da classe capitalista.

A rigor, a diferença fundamental entre estas duas abordagens reside em como enxergam o tema do chamado poder de Estado. O que implica discutir a força política relativa entre as classes sociais.

O poder é uma relação de força, portanto nenhuma classe ou setor de classe detém todo o poder. Mas na maior parte do tempo, na maior parte das sociedades, o poder é distribuído de maneira desigual entre os diferentes setores sociais.

Por isto é correto afirmar que o poder de Estado está com as classes ou setores de classe que controlam um conjunto de mecanismos (produtivos, militares, comunicacionais, legislativos, executivos, nacionais e internacionais) que permitem a estes setores manter e/ou definir o rumo geral de funcionamento de uma dada sociedade.

Por exemplo: na maior parte dos países do mundo, a classe dos capitalistas controla direta ou indiretamente o governo nacional, a maior parte dos governos regionais e locais, a maioria dos parlamentos em todos os níveis, a maior parte do judiciário, a maior parte das polícias e forças armadas, a maior parte das empresas privadas e também das empresas estatais, a maior parte dos meios de comunicação, da indústria cultural e educacional, bem como das igrejas.

Para construir o socialismo, a classe trabalhadora necessita do poder necessário para alterar o funcionamento da sociedade. Isto supõe ampliar o poder da classe trabalhadora e reduzir o poder da classe dos capitalistas. Neste processo de ampliação/redução, há um momento fundamental: quando os trabalhadores adquirem poder suficiente para manter e/ou definir o rumo geral de funcionamento de uma sociedade. Quando chegamos neste momento, falamos que a classe trabalhadora passou a deter o “poder de Estado”.

Por isto, ter o “poder de Estado” é um indicador fundamental, uma preliminar para a construção do socialismo.

Por isto, podemos definir estratégia como o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado e assim poder iniciar a construção do socialismo.

Esta definição permite compreender (no sentido de “incluir no contexto” e “dar significado”) o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolveu, nos diferentes países do mundo, ao longo dos séculos 19 e 20, bem como ao longo dos primeiros 16 anos do terceiro milênio, para construir suas condições de poder (o que pode incluir tanto auto-organização quanto ocupação de espaços no Estado) e/ou para conquistar o poder revolucionariamente (organizando-se para derrotar o Estado vigente e construir outro), assim como as várias situações híbridas e intermediárias de que a história está feita.

Aqui vale explicar os termos “reformista” e “revolucionário”.

Já dissemos antes que estes termos podem ser utilizados para definir o objetivo final (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”, capitalismo ou socialismo).

Já dissemos, também, que na prática histórica os que buscaram estes diferentes objetivos muitas vezes trilharam os mesmos caminhos e utilizaram os mesmos métodos.

Portanto, tivemos revolucionários extremamente moderados e reformistas extremamente radicais no que diz respeito às formas de luta.

Ocorre que os termos “reformista” e “revolucionário” também são utilizados para designar diferentes formas de conquistar o poder de Estado.

Neste caso, chama-se geralmente de “reformista” quem defende conquistar o poder de Estado, ocupando espaços no seu interior (por exemplo, disputando eleições, mas também organizando a classe trabalhadora e seus aliados para pressionar e obter conquistas frente ao Estado capitalista).

E chama-se geralmente de “revolucionário” quem, participando ou não das eleições e das lutas cotidianas da classe, considera que o “problema do poder” só será resolvido através da destruição do Estado burguês e sua substituição por outro de natureza distinta.

Devido a este duplo sentido, há correntes políticas e ideológicas que se consideram como “reformistas revolucionárias”, ou seja, defendem que lutemos através de meios reformistas para atingir um objetivo revolucionário.

Vejamos a seguir qual a implicação – na estratégia -- das diferentes visões acerca de como lidar com o poder de Estado.

Já dissemos que estratégia é o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado e poder assim iniciar a construção do socialismo.

Nesta definição, ter o poder de Estado é uma preliminar. Como fazer isto é a questão a ser respondida.

Para os que adotam uma resposta “reformista”, o como resulta da acumulação progressiva de forças, que num determinado momento resultará em que a classe trabalhadora detenha mais poder que a classe capitalista.

Não há, nesta visão “reformista” acerca do processo de como chegar ao poder de Estado, um momento fundamental, transcendental, um ponto de ruptura.

Podem até existir vários momentos de embates profundos, de recuos e de avanços; mas o que predomina é a noção do acúmulo progressivo.

Para os que adotam uma resposta “revolucionária”, a acumulação de forças inclui dois momentos combinados, porém qualitativamente distintos.

Um deles é o de acúmulo progressivo de forças; mas quanto este acúmulo de forças chega próximo de dotar a classe trabalhadora do poder de Estado, inaugura-se um novo momento, uma nova etapa: ou bem a classe trabalhadora conquista o “poder de Estado”, ou bem ocorrerá um retrocesso na acumulação de forças.

Nesta visão “revolucionária” acerca do processo de como chegar ao poder de Estado, a conquista do poder não resulta de um acúmulo “gradual”, mas sim de um salto, de uma ruptura, de uma mudança qualitativa.

Destas duas respostas decorrem diferentes implicações práticas e também conceituais.

Para os “revolucionários”, a estratégia deve responder a duas questões: quais as maneiras de acumular forças e quais as maneiras de conquistar o poder.

Já para os “reformistas”, a estratégia deve responder a uma única questão, pois a maneira de acumular forças também é a maneira pela qual se consegue ter o poder.

Isto pode ser dito da seguinte forma: para os revolucionários, o poder deve ser construído, mas também deve ser conquistado. Já para os reformistas, o poder apenas se constrói (não existindo um momento especial onde se “toma” o poder, quando se “assalta o Palácio de Inverno”).

Ao longo dos últimos duzentos anos, em diferentes países do mundo a classe trabalhadora construiu uma “modalidade” reformista e três “modalidades” revolucionárias para tentar resolver o problema do poder.

A modalidade reformista foi uma combinação entre a organização da classe (sindicatos, partidos, organizações populares diversas, e suas respectivas alianças) e a conquista de espaços institucionais (executivos, legislativos, democratização de outros aparatos de Estado).

Em nenhum país do mundo, esta modalidade reformista de lidar com o problema do poder “resultou na”/”permitiu a” construção do socialismo. Porém, em diversos países esta modalidade reformista resultou na/permitiu a construção de melhores condições de vida nos marcos do capitalismo.

Vale lembrar, entretanto, que a classe dominante destes países citados no parágrafo anterior geralmente se beneficiava da exploração imperialista sobre outros povos, o que permitiu/facilitou concessões à sua própria classe trabalhadora.

Donde resulta um questionamento acerca de como se combinaram -- para viabilizar a melhoria citada nas condições de vida nos marcos do capitalismo -- a luta por reformas e a “gordura” disponível para a classe dominante graças à exploração imperialista.

Já as três modalidades revolucionárias foram: a insurreição urbana, a guerra (nas suas variadas formas: guerra de guerrilhas, guerra popular prolongada, guerra de libertação nacional, guerra de ocupação) e a “via chilena para o socialismo”.

Exceto o caso da Revolução Russa de 1917, todas as demais experiências de construção do socialismo tiveram início na conquista do poder através de guerras.

E mesmo a experiência de 1917 ocorreu em meio a uma guerra mundial e incluiu, depois da revolução, uma sangrenta guerra civil. Fatos que marcaram profundamente as características das respectivas tentativas de construção do socialismo.

É importante, por outro lado, notar que a “via chilena” para o socialismo não resultou – até agora -- na construção do socialismo em nenhum dos países em que foi tentada.

A “via chilena” para o socialismo

A “via chilena”, como o nome sugere, foi elaborada e experimentada no Chile, especialmente no período de governo da Unidade Popular (1970-1973).

Deixemos de lado as características especificamente chilenas e nos concentremos no que é proposto por esta modalidade estratégica, enquanto solução para o problema do poder: a ideia central é utilizar os mecanismos de construção do poder (modalidade “reformista”), para possibilitar a conquista do poder (modalidade “revolucionária”).

Dito de outra forma, fazer da disputa e da conquista eleitoral de governos uma parte fundamental da disputa e da conquista do poder.

Os defensores da “via chilena” pretendiam, desta forma, resolver um problema que provavelmente angustiou e segue angustiando muitos dos que se pretendem revolucionários: que estratégia adotar em sociedades ou em momentos históricos em que não estão ocorrendo, nem estão no horizonte visível, processos revolucionários, crises revolucionárias, revoluções.

A “via chilena” oferecia, em tese, a seguinte resposta: utilizar a maioria eleitoral para viabilizar uma presença nos governos, governos que protagonizariam mudanças tanto de ordem econômico-social quanto de ordem política, mudanças que ao fim e ao cabo alterariam a natureza capitalista do Estado e da sociedade.

Obviamente, os defensores da “via chilena” tinham consciência de que a implementação desta estratégia provocaria uma reação por parte dos capitalistas: a oposição, a sabotagem e no limite o golpe de Estado.

Portanto, uma questão implícita era como criar as condições para que esta reação não tivesse êxito.

Uma primeira resposta era obter maiorias eleitorais, que permitissem controlar os órgãos executivos e legislativos, a partir dos quais se promoveria a democratização dos demais órgãos de Estado e/ou a convocação de processos constituintes, que no limite permitiriam substituir, a partir de processos eleitorais, o Estado capitalista por um Estado popular.

Uma segunda resposta era neutralizar os instrumentos que a classe capitalista utiliza para fazer oposição, sabotar e dar golpes: o controle da economia, o controle dos meios de comunicação e o controle das forças armadas. Isto se traduziria na ampliação da presença do Estado na economia, na quebra do controle capitalista sobre os meios de comunicação e na submissão das forças armadas ao controle democrático.

Este aspecto teve grande importância no caso chileno, onde uma parcela da esquerda acreditou que as forças armadas chilenas seriam fieis a uma suposta tradição legalista e não apoiariam um golpe. Ilusões semelhantes sobre as forças armadas também estiveram presentes noutros países.

O tema das forças armadas teve particular importância no caso venezuelano.

Lembramos que uma parcela das forças armadas apoiou um golpe contra o presidente Hugo Chávez, enquanto outra parcela apoiou a reação popular contra o golpe, forçando os golpistas a recuar e tornando possível uma reforma na instituição militar, reforma que ajuda a entender por quais motivos, pelo menos até o momento em que este texto está sendo escrito, predomine nas forças armadas venezuelanas o apoio ao governo popular.

Tanto no caso venezuelano quanto no chileno, entretanto, a sabotagem econômica foi fundamental para o êxito (parcial ou total) da reação capitalista. O que remete para uma complexa discussão sobre a relação entre economia nacional e internacional, Estado e mercado, discussão que também se faz necessária quando analisamos as experiências de construção do socialismo no século 20.

Uma terceira resposta a como criar as condições para que a reação capitalista não tenha êxito consiste em defender a construção de um “poder popular” paralelo ao poder de Estado e/ou complementar ao governo popular.

É importante perceber que todas as respostas citadas têm, entre seus efeitos, o de acelerar a reação capitalista. Fato que nos remete para uma das principais dificuldades "práticas" da “via chilena”: o tempo.

Numa guerra ou numa insurreição, a classe capitalista tende a perder completamente, ou quase, seus instrumentos de poder. Já na “via chilena”, a classe capitalista mantém parte importante, maior ou menor, de seus instrumentos de poder. E utiliza estes instrumentos para fazer oposição, sabotagem e no limite promover golpes.

A questão, portanto, é saber se os instrumentos que a classe trabalhadora vai conquistando, adquirindo e construindo através da combinação entre eleições e auto-organização serão capazes de deter a oposição, a sabotagem e o golpe.

Trata-se de uma “corrida contra o tempo”, que assume a forma de uma disputa política e ideológica – geralmente denominada de “disputa de hegemonia” e/ou de "guerra de posições"-- muito mais complexa do que a existente nos processos de guerra e de insurreição.

As noções de "guerra de posições" e de "guerra de movimentos" remetem a formas diferentes de travar o combate militar entre dois exércitos. Neste âmbito, a guerra de movimentos se expressa, por exemplo, nos ataques velozes da cavalaria (animal ou blindada). Já a guerra de posições teve sua expressão típica nas trincheiras e casamatas, com longas esperas e avanços lentos.

Guerra de posições conduz à "disputa de hegemonia" – termo muito utilizado por Antonio Gramsci e, antes dele, já utilizado pelos revolucionários russos no final do século 19, início do século 20.

Disputa de hegemonia corresponde a uma atitude presente em todas as “modalidades” utilizadas pela classe trabalhadora, ao longo dos últimos 200 anos, para tentar resolver o problema do poder.

A disputa de hegemonia não acontece apenas nos momentos “pacíficos”, mas também nas guerras e nas insurreições, que são expressões concentradas da luta política. Portanto, nelas também ocorre a disputa de hegemonia, que aqui tem o sentido de influência, convencimento, “quem dirige quem”.

Claro que quando a luta de classe chega ao estágio da “batalha final” pelo poder de Estado, a busca do “convencimento” tende a tornar-se secundária frente ao confronto direto de forças.

Portanto, o tema da disputa de hegemonia tem maior relevância nos momentos de acúmulo de forças “pacífico”, momentos prévios à “tomada do poder” ou posteriores a ele, neste segundo caso como parte da consolidação de uma nova ordem política e social.

Por decorrência, a modalidade "reformista" para tentar resolver o tema do poder (ou seja, aquilo que estamos chamando aqui de “via chilena”), modalidade que pode ser apresentada como um processo mais ou menos contínuo de acúmulo de forças, é aquela onde o tema da disputa de hegemonia tem mais importância.

Estratégia, período e etapa

Ao longo deste texto, o termo estratégia foi utilizado em um duplo sentido: como uma formulação teórica e como uma prática social.

A estratégia como prática social designa o sentido geral da ação implementada -- durante longos períodos de tempo -- pelas diferentes forças sociais e políticas. Não apenas o discurso que produzem, mas o conjunto de atos que cometem.

De forma análoga, a tática como prática social designa o sentido geral da ação implementada durante períodos de tempo mais curtos.

Já quando falamos de estratégia enquanto formulação teórica, estamos nos referindo ao “plano de ação” formulado pelos dirigentes das diferentes forças políticas e sociais.

Há uma piada que ilustra isto: ao ouvir as detalhadas orientações do técnico de futebol, orientações que sempre terminavam com drible e bola na rede, o craque perguntou se o técnico havia combinado tudo aquilo com os adversários.

Como na piada, sempre tende a haver alguma diferença entre o projeto e a ação real.

Esta diferença pode ter várias causas, mas a principal delas é que a ação real se desenvolve em combate com outras forças sociais e políticas, portanto em choque com outras estratégias, das quais surge uma resultante que sempre tende a diferir das intenções e propósitos originais.

Falando em tese, a melhor estratégia é aquela que considera – nas suas formulações e projeções – as potenciais decorrências do choque com as demais forças políticas e sociais.

Uma das maneiras de tentar prever estas e outras potenciais decorrências futuras é o estudo da história, embora esta não se repita nunca, motivo pelo qual os “modelos” tendem a ser muito enganosos.

Outra das maneiras de considerar estas potenciais decorrências futuras é tentar detectar quais as tendências mais gerais de um período histórico, no plano nacional, regional e internacional.

Estas tendências resultam de choques anteriores, que definem o quadro geral, a superfície, o ambiente em que se travam as batalhas do presente.

Alguns autores e dirigentes dão a este contexto estratégico o nome de etapa e consideram que a análise da etapa define os limites mínimos e máximos que uma estratégia pode obter.

Por exemplo: num contexto histórico de bipolaridade entre URSS e EUA, todos os processos nacionais eram levados a “posicionar-se” em relação aos polos. O que “empurrava” em direção ao socialismo processos que, em outros contextos, poderiam ter outros desdobramentos.

Estratégica, tática e análise de conjuntura

As definições estratégicas podem ser perfeitas no papel, mas se a tática for equivocada, de pouco adiantará.

Ou seja: não é provável que vença uma guerra alguém que perde todas as batalhas de que participa. Pois de derrota em derrota não se constrói a vitória final, embora seja impossível vencer sem antes ter sido derrotado; e seja imprescindível extrair lições da cada uma das derrotas.

A estratégia visa alterar a correlação de forças entre as classes sociais num plano fundamental: o do poder de Estado. E a partir daí, agir sobre o terreno das relações de produção.

A tática visa alterar a correlação de forças entre as classes sociais em níveis menos fundamentais: no governo, no parlamento, nas eleições, nas lutas sociais etc.

Ambas (estratégia e tática) dizem respeito à correlação de forças entre as classes sociais; ambas se articulam; e no limite ocorrem batalhas táticas com efeitos estratégicos (aquela batalha tática em que se decide a “tomada do poder” é também uma batalha estratégica, ou seja, mesmo tendo vencido todas as anteriores, perder esta batalha pode significar perder a guerra).

Noutras palavras: voltamos ao ponto de partida. Tudo depende da análise das classes sociais e da luta de classes.

A análise de conjuntura (ou seja, a análise de um conjunto de elementos) tem por objetivo medir a correlação de forças entre as classes sociais e definir quais passos táticos devem ser dados para acumular forças em direção aos objetivos estratégicos.

Como “medir” se estamos acumulando? É preciso verificar qual o nível de consciência, organização e mobilização da classe trabalhadora, vis a vis as demais classes sociais.

Vladimir Lenin dizia que a essência do marxismo é a análise concreta da situação concreta, que o marxismo é um guia para a ação.

“Situação concreta” e “ação” podem dizer respeito a períodos de tempo mais ou menos longos, em territórios mais ou menos extensos.

Podem dizer respeito à estratégia deduzida da análise das tendências de desenvolvimento de uma sociedade ao longo dos últimos 100 anos; ou dizer respeito à tática deduzida da análise de uma sociedade ao longo dos últimos 100 meses.

Podem dizer respeito à análise da situação de uma empresa, de uma cidade, de um estado, de um país, de um subcontinente, de um continente, do mundo.

Quando falamos de análise de conjuntura, estamos nos referindo a uma análise concreta de uma situação concreta mais curta no tempo e restrita no espaço.

Isto é assim não por conta da incapacidade de quem analisa, mas sim por conta da natureza do fenômeno analisado.

A análise de conjuntura é uma análise da correlação de forças em luta, correlação que em última análise remete para dois “sujeitos”: as classes sociais (no âmbito de cada país) e os Estados (expressão desta luta de classes no âmbito internacional).

A correlação de forças se altera com muita rapidez ao longo do tempo; e num mesmo momento, mas em territórios diferentes, também apresenta enormes diferenças.

Por isto, analisar a conjuntura de um século ou analisar a conjuntura do mundo inteiro é, na verdade, estudar várias conjunturas encadeadas ou simultâneas.

Isto é perfeitamente possível de fazer, mas neste caso estaríamos realizando não uma “análise de conjuntura” --ou seja, das tendências de curto/médio prazo-- mas sim uma análise das tendências de médio/longo prazo, portanto uma “análise de estrutura”.

A análise “estrutural” é fundamental, até porque sem ela a análise de conjuntura torna-se volúvel. Da análise de conjuntura deriva a tática, da análise de estrutura deriva a estratégia.

Há análises de conjuntura para todos os gostos e sabores; assim como há diferentes maneiras de analisar a conjuntura; não havendo consenso sobre o que significa “analisar”, nem tampouco sobre o que significa “conjuntura”.

As análises da conjuntura fazem parte... da conjuntura. A difusão de determinadas interpretações, narrativas, conclusões, propostas faz parte da luta política permanente que se trava em nossa sociedade. Por isto é fundamental saber que não existe análise neutra, acima e a parte daquela luta.

A classe trabalhadora está submetida à influência da ideologia da classe dominante (os capitalistas). Reconhecer isto e desenvolver de forma consciente seu próprio ponto de vista é parte integrante da luta por fazer da classe trabalhadora a classe "dominante" e "dirigente" da sociedade, mas voltada para a superação de toda e qualquer forma de dominação e exploração.


(texto ainda em fase de redação e revisão. Sujeito a alterações)

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