domingo, 22 de maio de 2016

Frei Betto: ressentimento?

Sempre é um risco comentar entrevistas, especialmente as publicadas nos jornais do oligopólio. Entrevistas são editadas, sendo grande o risco de distorções. 

Feita esta ressalva, seguem alguns comentários sobre a entrevista concedida por Frei Betto ao jornal Valor Econômico e publicada no dia 16 de maio de 2016.

Frei Betto está correto ao dizer que "estamos diante de um golpe parlamentar".

E também acerta ao dizer que "se Dilma sofrer impeachment o ciclo do PT no governo federal, iniciado em 2003, se encerra agora. Mas nada indica que o ciclo do PT como partido está findo. E não está escrito nas estrelas que, em 2018, o candidato do PT estará fora da possibilidade de ser eleito presidente da República".

Mas ele comete uma imprecisão ao afirmar que "a oposição ressentida abre um precedente na institucionalidade política brasileira ao insistir em fazer coincidir oposição e deposição". 

Esta não é a primeira vez que a oposição de direita atua de maneira golpista. Vide 1954 e 1964.

Embora a oposição de direita seja ressentida, seu ressentimento está inscrito no DNA do capitalismo brasileiro: superexploração não convive bem com amplas liberdades democráticas.

Se isto é verdade, não basta dizer que "o Brasil precisa urgente de reforma política".

Afinal, se a oposição de direita não tolerou conviver com um governo que não fez nenhuma reforma estrutural, por quais motivos ela toleraria conviver com uma reforma política?

Ou seja: quem defende uma reforma política precisa colocar em discussão como imagina que esta bandeira possa ser viabilizada, num país como o Brasil e nas circunstâncias históricas que vivemos.

Frei Betto considera que os "governos do PT foram os melhores de nossa história republicana". 

Diz que "a classe média se sentiu ameaçada com a ascensão dos pobres". 

E considera que "o governo se equivocou ao pretender ser o pai dos pobres e a mãe dos ricos".

Mesmo supondo que estas afirmações estivessem totalmente corretas, ainda assim falta algo no raciocínio: ao não promover reformas estruturais, nossos governos facilitaram triplamente a vida dos ricos.

Por um lado, deixamos que os ricos se tornassem ainda mais ricos.

Por outro lado, criamos os pretextos simbólicos e reais que permitiram aos ricos mobilizar os setores médios contra nós. 

Pretextos simbólicos: a desigualdade entre os que vivem de salários ficou menor. 

Pretextos reais: ao aumentar o salário das camadas populares sem ao mesmo tempo fazer reformas estruturais, ampliamos o custo de reprodução da força de trabalho dos setores médios. 

Por exemplo: não criamos as condições para atrair os setores médios para a educação pública e para a saúde pública, ao mesmo tempo em que tornaram-se mais caro os serviços que estes setores médios contratam das camadas populares.

Por um terceiro lado, o caminho de elevar o nível de vida do povo via ampliação do consumo facilitou a captura dos setores populares ascendentes pela lógica dos setores médios. 

Captura reforçada pelo discurso do próprio governo (vide a presidenta Dilma, que na campanha de 2014 falou em construir  um país de classe média); e reforçada também pela teologia da prosperidade difundida por várias igrejas, que por sua vez beneficiaram-se passiva ou ativamente com uma política de alianças equivocada. 

Na prática, portanto, não tocamos nos ricos e melhoramos a vida dos pobres de maneira tal que, na prática, reforçamos a influência dos ricos sobre os setores médios tradicionais e sobre os setores populares que estavam ascendendo socialmente em nossos governos.

Frei Betto está certo ao dizer que "nunca se apurou tanto a corrupção no Brasil quanto nos governos do PT". 

Mas erra ao dizer que foi uma "pena" que "alguns dirigentes do partido tenham cedido à corrupção e, assim, maculado profundamente a imagem de uma agremiação que, na sua origem, prometia se primar pela ética". 

Não foi uma "pena", não aconteceu por acaso, não foi algo inadvertido. E isto não é o aspecto central do problema.

A corrupção é um fenômeno inerente ao capitalismo e intrínseco a democracia burguesa, inclusive por conta do financiamento empresarial das campanhas eleitorais.

Assim, embora seja trágico que algumas pessoas tenham se corrompido pessoalmente, muito mais grave -- do ponto de vista histórico, sociológico, político e estrutural-- é a promiscuidade com os interesses do grande capital. 

Da mesma forma que "fulaniza" o tema da corrução, Frei Betto fulaniza os motivos pelos quais a Câmara e o Senado aprovaram o processo de impeachment.

Nas suas palavras: "o ressentimento da oposição, que não se conformou ter perdido a eleição em 2014, e a ação nefasta de Eduardo Cunha, que soube se aproveitar do modo como Dilma sempre tratou o Temer, com descaso".

Sobre o "ressentimento", repetimos tratar-se de uma palavra inadequada, pois não lança luz sobre o fundamental: a classe dominante é geneticamente incapaz de conviver com a elevação do bem estar social e das liberdades democráticas.

Sobre Cunha ter se aproveitando do "descaso" de Dilma para com Temer, trata-se de uma das muitas variantes que busca explicar o êxito do golpe através de psicologismos.

O golpe teve êxito por diversos motivos, mas o fundamental é que a política econômica do segundo mandato de Dilma nos fez perder apoios nos setores populares. Apoio que havia, antes, nos permitido eleger Dilma em 2010 e 2014. 

Betto acerta quando diz que cometemos erros desde 2003. É verdade que como muitos outros, Betto trata destes erros como se tivessem sido cometidos por terceiros.

Mas erra profundamente quando insiste em que o problema do PT foi ter trocado um projeto de Brasil por um projeto de poder. 

A verdade está no oposto deste raciocínio. 

Faltou ao PT implementar uma estratégia que lhe permitisse enfraquecer o poder da classe dominante e fortalecer o poder da classe trabalhadora.

E uma das razões pelas quais o PT não fez isto foi a influência de um discurso com fortes influências liberais, republicanas e católicas, que enfraqueceram no Partido as visões baseadas na luta das classes pelo poder.

Sobre o Fome Zero, acho que Betto se deixa dominar pela vaidade. Só isto explica que veja nisto o erro decisivo.

A mesma vaidade que o leva a insistir na fábula de que nunca foi filiado a nenhum partido, quando todo mundo sabe que Betto teve mais influência sobre o PT do que grande parte dos dirigentes partidários eleitos pela base.

Aliás, nessa linha é didático que ele diga que "o futuro do PT dependerá, a meu ver, de sua autocrítica e refundação. Quanto a Lula, as pesquisas já indicam: disputa com Marina Silva a preferência eleitoral para se eleger presidente em 2018".

Cá entre nós: que sentido faz cobrar do PT que faça autocrítica e poupar Lula da mesma tarefa? 

Quase no final da entrevista, Betto pergunta "quem hoje tem um projeto de Brasil pós-capitalista?"

A resposta é: muita gente. A começar pelo PT, onde grande número de militantes é anti-capitalista, socialista. 

A questão é outra: a estratégia adotada pelo PT e por grande parte da esquerda brasileira desde 1995 entrou em colapso. É preciso construir outra. O que supõe enfrentar o tema do poder, sem os equívocos do último período, equívocos que Betto ao mesmo tempo critica e reforça.




Segue a entrevista citada.

"Esquerda jamais esteve no governo e Direita nunca deixou o poder"
Cristiane Agostine
Brasília
No Brasil, a esquerda jamais esteve no governo e a direita nunca deixou o poder. Essa é a análise do escritor e religioso  Carlos Alberto Libânio Christo,  o Frei Betto, amigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidente afastada Dilma Rousseff, interlocutor dos movimentos sociais e ex-integrante da gestão petista no primeiro mandato do ex-presidente.
Frei Betto nunca pertenceu oficialmente ao PT, mas em 2003 participou do governo federal e esteve  envolvido na estruturação do programa “Fome Zero”, um antecessor do Bolsa Família, do qual sempre foi crítico. Em 2004 o religioso se afastou do governo. Escreveu dois livros sobre sua passagem no Executivo, “A mosca azul” e “Calendário do poder”.
Para o religioso, o presidente interino Michel Temer  poderá ser o principal cabo eleitoral de Lula em 2018.
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor por e-mail.

Valor: O ciclo do PT no governo pode ter acabado com o afastamento de Dilma. Que análise o senhor faz dessa conjuntura?
Frei Betto: Considero que a presidente Dilma não cometeu crime, estamos diante de um golpe parlamentar, e que a oposição ressentida abre um precedente na institucionalidade política brasileira ao insistir em fazer coincidir oposição e deposição. O precedente está aberto. E toda essa turbulência demonstra que o Brasil precisa urgente de reforma política. Sim, se Dilma sofrer impeachment o ciclo do PT no governo federal, iniciado em 2003, se encerra agora. Mas nada indica que o ciclo do PT como partido está findo. E não está escrito nas estrelas que, em 2018, o candidato do PT estará fora da possibilidade de ser eleito presidente da República.

Valor: Lula e o governo têm dito que o PT saiu da Presidência por ter escolhido os mais pobres. O senhor concorda?  Em que medida a tensão entre classes  influenciou?

Frei Betto: Sim, os governos do PT foram os melhores de nossa história republicana. Tiraram 45 milhões de pessoas da miséria, criaram uma vasta rede de proteção social aos mais pobres, deselitizaram a universidade, a cada ano deram aumento do salário mínimo acima da inflação, etc. A classe média se sentiu ameaçada com a ascensão dos pobres. Conheço uma madame que ficou indignada ao encontrar, no voo para Orlando, o porteiro de seu condomínio com a família... Porém, o governo se equivocou ao pretender ser o pai dos pobres e a mãe dos ricos... Em 13 anos de presidência, o PT não promoveu nenhum reforma estrutural! Investiu-se mais em facilitar à população acesso aos bens pessoais (celular, computador, carro, linha branca), quando se deveria priorizar o acesso aos bens sociais (educação, saúde, moradia, segurança, saneamento etc).

Valor: Dilma diz que uma de suas principais marcas foi o combate à corrupção e que isso ajudou no impeachment. O senhor concorda?
Frei Betto: É óbvio que nunca se apurou tanto a corrupção no Brasil quanto nos governos do PT. Pena que alguns dirigentes do partido tenham cedido à corrupção e, assim, maculado profundamente a imagem de uma agremiação que, na sua origem, prometia se primar pela ética. O capital simbólico do PT se esvaiu com o tempo.
Valor: Os governos Dilma e Lula já passaram por outras crises. O que explica chegar ao  afastamento?
Frei Betto: O ressentimento da oposição, que não se conformou ter perdido a eleição em 2014, e a ação nefasta de Eduardo Cunha, que soube se aproveitar do modo como Dilma sempre tratou o Temer, com descaso.

Valor: O PT falhou ao reconstruir seu projeto de poder depois do fim do governo Lula? De que forma poderia ter feito diferente?
Frei Betto: Poderia ter feito diferente desde o início do governo Lula, como valorizar os movimentos sociais e suas lideranças, de modo a cacifá-los politicamente e, assim, renovar o Congresso, como fez Evo Morales na Bolívia. Foi um erro priorizar a governabilidade no arco de alianças com partidos e políticos viciados em fisiologismo e corrupção. Agora o feitiço se volta contra o feiticeiro...
Valor: O senhor tem dito que o erro do PT foi abandonar o projeto de Brasil para se dedicar a um projeto de poder. Quando isso ficou mais marcado?
Frei Betto:  Desde o momento em que o governo jogou na lata de lixo o único programa que mobilizou toda a nação, acima de preferências partidárias e ideologias: o Fome Zero. Tratava-se de um projeto emancipatório, trocado pelo Bolsa Família, compensatório. Ao ceder à pressão dos prefeitos e erradicar os Comitês Gestores do Fome Zero, ali acendeu o sinal de que o projeto de poder interessava mais do que o projeto de Brasil.

Valor: Com esse sistema político, o que poderia ter sido diferente?
Frei Betto: Além de priorizar o acesso aos bens sociais, e não aos pessoais, havia sim condições políticas, no primeiro mandato de Lula, para se promover uma reforma política e uma certa democratização da mídia, já que o sistema radiotelevisivo do Brasil pertence à União.
Valor: Que motivação o senhor vê para o militante e/ou eleitor petista continuar apoiando o partido?
Frei Betto: Se o PT não se refundar, como propõem Olívio Dutra e Tarso Genro, será difícil encontrar motivações. Como nunca fui militante de nenhum partido, mais não posso opinar.

Valor: E que futuro o senhor analisa para o PT? E para Lula?
Frei Betto: O futuro do PT dependerá, a meu ver, de sua autocrítica e refundação. Quanto a Lula, as pesquisas já indicam: disputa com Marina Silva a preferência eleitoral para se eleger presidente em 2018.

Valor: Lula foi denunciado pela PGR ao Supremo. O PT sobrevive sem o ex-presidente?
Frei Betto: A denúncia não neutraliza o potencial político de Lula. Nem mesmo se o pior lhe acontecer: a prisão. Vide Nelson Mandela. E, historicamente, as instituições costumam sobreviver a seus fundadores.

Valor: O governo Temer tem forte viés conservador e vai rever políticas sociais. Qual sua análise sobre essa gestão?
Frei Betto: Temer será o principal cabo eleitoral de Lula em 2018, ainda que não queira. A julgar pelo ministério que compõe e pelo ontofisiologismo do PMDB, será um mandato-tampão de turbulências e impasses. Temo que este governo provisório e golpista anule as conquistas efetivas pelos programas sociais dos governos Lula e Dilma.
Valor: Lula ainda poderá voltar à Presidência? Qual a viabilidade eleitoral do PT para 2018?
Frei Betto: Estou seguro que Lula será candidato, a menos que impedido por uma força maior, como a cassação de seus direitos políticos ou o falecimento. Se a eleição fosse hoje, teria chances de se eleger, segundo as pesquisas. Quanto ao futuro, só o tempo dirá. A viabilidade eleitoral vai depender do perfil do período Temer.
Valor: O PT e movimentos sociais prometem resistir nas ruas. Até que ponto as manifestações conseguirão impedir decisões do Temer?
Frei Betto: Essa crise tirou parcela significativa da nação da imobilidade, da letargia. Contribui para mobilizar e politizar setores sociais. Se eles resistirão por mais tempo vai depender da capacidade de um trabalho político de base, abandonado nos últimos anos.
Valor: Terão fôlego para manter as ruas mobilizadas?
Frei Betto: Eles tendem a crescer, e ao menos três já demonstraram ter fôlego: os estudantes secundaristas, o MST e o MTST.
Valor: PSOL e Rede, criados com os descontentes do PT, não foram capazes de aglutinar a esquerda. Como ficará a esquerda no país?
Frei Betto: Que esquerda? Quem hoje tem um projeto de Brasil pós-capitalista? Qual o perfil do "outro mundo possível"? O PT, na sua origem, tinha respostas para essas questões.

Valor: Como a esquerda poderá voltar ao governo?
Frei Betto:  No Brasil a esquerda jamais esteve no governo. E a direita nunca abandonou o poder.

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