domingo, 22 de maio de 2016

Boris e a ilegitimidade

Prezado Caio Navarro

Em atenção à tua mensagem sobre o comentário do Boris Vargaftig, opino o seguinte.


Dois setores da esquerda não acreditavam em golpe.

O primeiro era radicalmente governista, passou os últimos anos defendendo posições republicanas e agora está tendo dificuldade em entender o que aconteceu. 

O segundo era radicalmente anti-governista, passou os últimos anos defendendo posições maximalistas e agora está tendo dificuldade em se localizar na conjuntura.

Um bom exemplo deste segundo caso é o texto que voce nos enviou, de Boris Vargaftig.

Comento a seguir frase a frase (os trechos indicados em negrito itálico foram escritos por BV, os grafados normalmente são de minha autoria).

1) A legitimidade é um critério de classe. Assim o governo resultante da revolução de outubro era legítimo para os revolucionários e ilegítimo para os alijados do poder político e econômico.

Tomar a revolução russa de 1917 como parâmetro para debater um tema da conjuntura brasileira em 2016 pode ser sintomático, mas daí não se deduz nada, pode até ser demonstração de bom gosto.

2) Classificar os governos burgueses de “legítimos” ou “ilegítimos” é aceitar o critério jurídico vigente, os três poderes consagrados, Montesquieu etc. e tal... 

Se a legitimidade é um critério de classe, como foi dito antes, então a classe trabalhadora pode a seu critério considerar os governos burgueses como "legítimos" ou "ilegítimos". Não há impedimento para isto, nem tampouco é necessário citar Montesquieu para tal.

3) De qualquer forma, ser “legítimo” - ou seja, ter sido empossado segundo os códigos vigentes em regime capitalista - mudaria algo na política de Temer e comparsas?

Já que Boris começou citando a revolução russa, me vejo no direito de dizer que Leon Trostky ficaria horrorizado com um raciocínio deste tipo, que parte do princípio segundo o qual não muda nada, para a política da classe trabalhadora, o fato de um governo ser mais ou menos democrático.
O tema não é se mudaria algo na política dos golpistas. O tema é que Temer e comparsas não estariam onde estão, se não tivessem recorrido a um golpe parlamentar. 
Um governo que resulta de um golpe não é legítimo segundo as regras vigentes. Os que são contra estas regras, por considerá-las viciadas ou restritivas, devem abrir mão delas? Devem aceitar como "legítimos" quaisquer procedimentos?


4) Do ponto de vista da burguesia, o governo Temer é “legítimo", um bando utilizou as leis de sua legislação para expulsar outro,
conformando-se o quanto possível ao ritual destas suas leis
“legítimas". Acontece que o outro bando, decadente e progressivamente rejeitado pela população trabalhadora (portanto tornado inútil), tinha origens vagamente social-democratas e preparava um plano econômico (recuos no SUS, no ensino, revisão da CLT), político, repressivo (lei anti-terror) em linhas semelhantes às de Temer, FIESP e outras oficinas conspiratórias. A burguesia age hoje diretamente via Temer e há pouco tempo dispunha de meninos de recado via PT/Lula/Dilma; estes meninos foram bem inadequados, revistaram as gavetas e sobretudo as carteiras dos burgueses, não serviam mais e foram alijados. Embora muito enfraquecidos, alguns pensam em sua volta.

O parágrafo inteiro é uma pérola. Lembremos o que foi dito antes: se "a legitimidade é um critério de classe", se "do ponto de vista da burguesia" o governo Temer é "legítimo", não seria o caso de perguntar o que a classe trabalhadora considera?
A pergunta é simples. Mas como a resposta não é fácil, Boris escorrega da análise das classes para uma análise dos "bandos". Entretanto, mesmo que o governo derrubado pelo golpe fosse um "bando rejeitado pela classe trabalhadora", ainda assim restaria dizer qual a opinião da classe trabalhadora sobre o bando que deu o golpe.
Quando chegamos neste ponto, fica claro que o caso é simples: para não afirmar que o governo Dilma é legítimo, Boris se recusa a dizer que o governo Temer é ilegítimo. 
Embora suas motivações sejam aparentemente de esquerda (criticar o governo Dilma), a atitude prática de Boris é suavizar na crítica do governo golpista, suavizar com a direita.
No fundo, o tema é: na lógica de Boris, trata-se de uma luta de quadrilhas. A pergunta é: do ponto de vista da classe trabalhadora, é isto mesmo? Ou as medidas do governo Temer estão deixando claro que os governos encabeçados por petistas, por mais erros e concessões que tenham cometido, eram muito melhores do que certa esquerda gostaria de admitir?


5) O perigo desta classificação é que atrás dela vem o “Volta
Dilma”, devagarinho mas em curso. E isto, seria “legítimo”? Esta
política tende a reabilitar o PT, que mostrou sua face, sua
“ilegitimidade” do ponto de vista de classe. Poucos o defendem e os marxistas devem (deveriam) desmascará-lo e não legitimá-lo. Um bloco classista, oposto às duas tendências e com proposta de classe a ser discutida e negociada, ajudaria milhões de pessoas, trabalhadores principalmente, a compreenderem melhor o que ocorre e por conseguinte, a reforçarem a luta contra a supressão dos direitos e, através de um programa de transição, por um outro tipo de estado. Senão, continuaremos na cantilena do “menos pior” e do engodo permanente

Aqui está a confirmação do que dissemos antes: falar que o governo Temer é ilegítimo resulta em considerar legítimo o governo Dilma e, portanto, resulta em reabilitar o PT.
Como Boris considera mais importante derrotar o PT do que derrotar Temer, ele prefere suavizar com este último. 
Novamente, Leon Trostki ficaria horrorizado com este jeito de raciocinar, totalmente diferente do que ele adotou ao definir qual deveria ser a atitude dos comunistas na luta contra o fascismo.

6) Como dizia Lenin, só a verdade é revolucionária e a verdade é que os dois blocos favorecem hoje não somente a manutenção do capitalismo, mas o mesmo programa de super-exploração e de recuo que Dilma começava antes da burguesia escolher outro caminho, fazer diretamente o que o PT fazia mal...

Lenin defendia a análise concreta da situação concreta. E a pergunta "concreta" é: o que ajuda mais a classe trabalhadora no atual momento? Atacar com todas as energias o governo Temer e defender que o Senado absolva a presidenta Dilma? Ou o melhor para a classe trabalhadora é não considerar ilegítimo o governo Temer e defender que o Senado afaste definitivamente a presidenta Dilma? Estas são as alternativas concretas. Para evitá-las, Boris faz sofismas.
Ainda na mesma linha: se o PT no governo era tão servil, por qual motivo a burguesia escolheu outro caminho?

7) Não leve a mal, mas a classificação implícita nos qualificativos
“legitimo/ilegítimo” constitui total desvio de uma política
marxista. Pouco importa se alguns grupos marxistas, sobretudo
representados na academia pregam esta política que é ainda pior do que o antigo “_Volta Getúlio_”, “_Bota o retrato do velho, bota no mesmo lugar, que o retrato do velhinho faz a gente trabalhar...

O caso resume-se ao seguinte: numa democracia burguesia, o critério de legitimidade está vinculado às regras vigentes nesta democracia burguesa. A burguesia brasileira não tolera as suas próprias regras, assim como não tolera a Consolidação das Leis do Trabalho. Por isto tantos golpes e crimes. Mas ao mesmo tempo a burguesia não pode assumir abertamente que sua relação com a legalidade burguesia é estritamente instrumental. Por isto, ela pratica golpes e crimes ao mesmo tempo que afirma estar agindo dentro da mais estrita lei e ordem. Daí surge um conflito permanente entre a legalidade e a legitimidade: aos inimigos, nem mesmo a lei; aos amigos, muito mais do que a lei.
Frente a isto, qual deve ser a nossa postura? Devemos, é claro, denunciar a hipocrisia do lado de lá. Mas, ao mesmo tempo, devemos buscar aproveitar cada brecha para proteger os interesses da classe trabalhadora. No caso, devemos atacar a ilegitimidade de quem exerce a presidência sem ter sido eleito para tal. E exigir que se restaure a legalidade e a legitimidade.
A lógica de Boris é outra. É direito dele, embora seja um absurdo total. Mas sua lógica não é marxista. É apenas maximalista. 



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