sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Quais lições chegam da Inglaterra?

Fiquei extremamente contente com a eleição de Jeremy Corbyn, novo líder do Labour.


Mas não tiro daí as conclusões expostas por Leopoldo Vieira, em artigo que pode ser lido ao final e também no endereço http://www.teoriaedebate.org.br/index.php?q=materias/politica/licoes-que-chegam-da-inglaterra-e-o-pt

Na minha opinião, Vieira faz deduções incorretas. Vou dar exemplos.

1) Vieira diz que ao eleger Jeremy Corbyn como líder, "o Labour mostra que o caráter de massas do partido é a solução".

Pergunto: e a eleição de Tony Blair mostrou o quê? 

Que o Labour então não era de massas? 

Ou que o caráter de massas pode ser acompanhado de diferentes linhas políticas?

Na verdade, o "caráter de massas" de um partido, tomado em si mesmo, não explica a política deste partido.

A idéia de que a forma de organização define a política é típica das seitas esquerdistas.

Curiosamente, algumas pessoas que migraram da ultra-esquerda para o centro-direita trouxeram junto esta concepção e, agora no oposto do espectro político-ideológico, continuam tratando as formas organizativas como um valor "em si".

2)Vieira diz que a eleição de  Corbyn demonstra "que partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios".

A conclusão é unilateral.


Todo partido pode se reinventar.

O próprio Labour se "reinventou" na época de Blair, indo para a direita.

Naquela ocasião, o "impacto transcendente" foi ver o Labour converter-se num instrumento do neoliberalismo.

Agora ainda é cedo para falar em "impacto transcendente" da eleição de Corbyn.

Seja o que for que aconteça na Inglaterra, cabe perguntar: o caso do Labour pode servir de base para uma frase tão generalizadora acerca dos "partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos"?

Na minha opinião, não.

Aliás, quem conhece a história do Labour sabe que ele sempre foi um caso extremamente singular.

O problema é que Vieira constrói seu raciocínio de trás para frente, mais ou menos como fazem os editores de Veja, que adotam uma tese e mandam os repórteres garimpar "aspas" para "sustentar" esta tese pré-concebida.

Ou seja, o que o preocupa não é estudar a experiência concreta do Labour, mas sim buscar pontos de apoio para uma opinião prévia segundo a qual é mais importante "reinventar" os partidos tradicionais do que apostar no "surgimento de forças alternativas".

Eu sou petista e luto para que o PT supere a crise atual. E estou convencido de que se o PT não tiver êxito, viveremos um longo e reacionário recesso até que surja uma alternativa.

Mas nunca usaria o Labour, muito menos um episódio na vida do Labour, para sustentar teoricamente meu ponto de vista.

Aliás, nos anos 1980 e 1990 era muito comum em certos grupos de ultra-esquerda o abuso de "paralelismos" históricos deste tipo.

3) Vieira diz que em julho deste ano, escreveu para Teoria e Debate um artigo sobre o plebiscito grego no qual afirmava que "a vitória do ‘não’ no referendo grego, no último 5 de julho, não levou a Grécia ao socialismo, como fantasiaram alguns, mas à negociação de condições melhores de seu resgate, o que pode abrir um ciclo de vitórias para as novas (e velhas, porém, renovadas) forças populares europeias".


Não vou discutir as fantasias dos outros.


Mas pergunto: o que aconteceu na vida real?

Na vida real, não houve "condições melhores de seu resgate".

Pelo contrário, o acordo assinado pelo Syriza é sob vários aspectos mais agressivo contra a soberania nacional grega e mantém a regressão social.

Nestas condições, vincular a presença e ação do Syriza no governo a um futuro "ciclo de vitórias" para as forças populares europeias é excesso de otimismo.

Aliás, achar que da Europa possa surgir a luz é, na melhor das hipóteses, uma concessão tardia ao eurocentrismo.

No que toca a Europa, o argumento poderia ser outro, do tipo: as mesmas condições que geraram o Syriza também estão presentes em outros países e poderão gerar efeitos similares.

Mas não é isto que Vieira diz. Suas generalizações são indevidas.

4) Vieira diz que a vitória de Corbyn é uma "lição e tanto para quem analisa a esquerda mundial sob uma visão doutrinária baseada em epítetos, dogmas e preconceitos teóricos"

Confesso que não compreendi o argumento.


A esquerda brasileira e mundial não é composta de dois grupos: "os esquerdistas" e a "turma da linha justa".

A esquerda brasileira e mundial é composta de muitos e diferentes setores, para além da dicotomia acima.

Além disso, o doutrinarismo, os dogmas e preconceitos não são exclusividade do esquerdismo.

O caso brasileiro --e inclusive o caso petista-- demonstram que também existe um doutrinarismo de direita, que insiste em mater a estratégia e o programa errado, mesmo que todos os fatos indiquem a necessidade de mudar de linha.

Neste sentido, a vitória de Corbyn poderia ser um sinal -- para os dogmáticos de direita-- que a saída pode estar na esquerda. 

Mas não é isto que Vieira quis dizer, salvo engano da minha parte.

5) Vieira diz que "não foi nenhum grupo propagandista de extrema esquerda ou uma "novidade conectada" que renovou as esperanças dos trabalhadores britânicos, (...) Foi o velho trabalhismo, centenário, profundamente vinculado ao mundo do trabalho e de massas". 

Opa, opa, opa: espero que Vieira tenha alguma razão.


Mas para que ele tenha razão, é preciso que o Labour sob nova direção conquiste maioria entre os trabalhadores. E isto ainda não aconteceu.

Para exemplificar: mesmo que a esquerda do PT vença as próximas eleições internas, muito terá que ser feito para o PT reconquistar a classe trabalhadora. Porque o estrago foi e continua sendo enorme.

6) Vieira diz que "partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar – vide o Partido Justicialista, na Argentina, antes das novas promessas do Labour – e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios".


Esta frase poderia ter sido escrita pelo Conselheiro Acácio, pois é óbvio que se um grande partido vira à esquerda, o efeito disto tende a ser maior no curto prazo do que o causado pelo surgimento de forças alternativas.

Mas este raciocínio não diz absolutamente nada sobre o que pode/tende a acontecer em cada caso concreto.

Para isto, é preciso fazer análise concreta da situação concreta.

Até porque, para cada grande partido que vira à esquerda, temos outro tanto de exemplos de partidos grandes que não conseguem fazer isto.

A impressão que fica é que Leopoldo está tão preocupado com o que dizem e fazem "grupos minoritários" -- que ele não diz quais são-- que ele força a mão na realidade para tentar manufaturar argumentos em favor da opção por disputar o PT.

Como disse antes, minha opção é disputar o PT. Mas os argumentos em favor disto precisam ser construídos a partir da análise da nossa realidade, inclusive da trajetória do PT e da classe trabalhadora brasileira.

7) Vieira diz que o ocorrido pode "mais do que incentivar novos agrupamentos críticos à austeridade, pode reencantar o Partido da Social-Democracia Alemã, quiçá o próprio Partido Socialista francês, além de dar maior ímpeto e coragem ao Partido Democrático da Itália – todos com a mesma natureza do Labour. Além do que, tratando-se do principal aliado global dos EUA, pode influenciar na remodelagem do Partido Democrata americano".

Vieira deve ter visto o passarinho azul antes de escrever estas frases: seu entusiasmo é verdadeiramente emocionante.


Do meu lado, só posso dizer que a relação entre o Labour e os partidos citados é um pequeno aspecto da relação mantida entre a política inglesa e a política dos EUA, da França e da Alemanha.

E esta relação responde a estímulos que passam principalmente por outras varíaveis (dinâmica da economia mundial, escolhas geopolíticas etc.).

É um erro simplificar e reduzir isto a influências entre partidos.

8) Vieira diz que "antes que alguém brade que se tratou de uma vitória "da esquerda" contra a direita partidária e comece a fazer analogias imprecisas, como quando confundiram o Syriza com partidos e agrupamentos críticos à condução do PT, é importante destacar o centro do programa escolhido junto com Corbyn: aumento do investimento do Estado". 

Aqui a coisa fica ao mesmo tempo mais clara e mais divertida.


É óbvio que a esquerda do PT achou triplamente positiva a vitória de Corbyn. Primeiro, em si. Em segundo lugar, porque é um alento para nossa luta aqui. E em terceiro lugar porque ajuda a questionar algumas certezas da esquerda não-petista.

É óbvio, também, que não devemos fazer analogias imprecisas, a começar pelas cometidas pelo próprio Vieira e já comentadas antes.

O divertido, contudo, é apoiar o argumento no programa de Corbyn:aumento do investimento do Estado, que Vieira diz ser "o consenso mundial das esquerdas".

Quero mudar para o universo paralelo em que Vieira transita, pois neste aqui nunca houve e não há "consenso mundial das esquerdas".

Vejamos o tema "aumento do investimento do Estado": qual Estado? Que tipo de investimento? A serviço de qual estratégia?

Especialmente depois da campanha eleitoral de 2014 -- em que nossa candidata falou em gerar empregos, retomar o bem-estar e atacar as desigualdades, nem que a vaca tussa e ajuste é coisa de tucano --para depois fazer o que está fazendo, é preciso ir além das obviedades e frases feitas.

Por outro lado, no debate petista, é a chamada esquerda do Partido que mais insiste acerca do papel do Estado. Atitude que tem analogia com a postura do Corbyn. Mas esta analogia Vieira não destaca...

9) Vieira diz que "a vitória de Corbyn tenha sido das bases contra a burocracia partidária e seus equívocos".

É adorável esta linha de argumentação, que noutros tempos chamaríamos de sofisma.


Fica mais claro o objetivo de Vieira quando se lê o seguinte: esta"vitória foi facilitada pela mudança no sistema de votação do partido. Desta vez, o voto, antes restrito aos filiados, estendeu-se aos simpatizantes e valeu a lógica do "uma pessoa, um voto", e não mais a distribuição de pesos para os setores sindical e parlamentar. Disso se reforçou o partido-movimento efetivo, não o partido "estado de espírito", muitas vezes confundido com o primeiro conceito".

Se eu entendi o que Vieira quis dizer (embora eu tenha dificuldade de entender algumas de suas frases e raciocínios), ele acredita que ampliar o eleitorado interno (por exemplo, criando o PED ou eliminando a cobrança como condição de votar) favorece as bases contra a burocracia partidária.

Aqui está o raciocínio de Vieira: "Não foi um aggiornamento em torno de quadros, intelectuais e dirigentes. Isso diz algo sobre o PT atual e dos resultados do seu V Congresso, em Salvador (BA), quando foi rechaçada a ideia de que o grande Partido dos Trabalhadores e do povo sucumbisse a um clube de lideranças autoproclamadas ilibadas capazes de conduzi-lo para os desafios da grave conjuntura política brasileira".

Vieira confunde várias coisas no raciocínio acima.

O que foi rechaçado no Congresso de Salvador, por 55% dos delegados e delegadas, foi uma crítica clara e explicita à política econômica do governo Dilma. O que isto tem que ver com o assunto das "lideranças autoproclamadas ilibadas"?

O que também foi rechaçado no Congresso de Salvador? O fim do PED. Foi mantido o sistema atual, que na prática vem contribuindo e muito para que a "burocracia partidária" controle o resultado das eleições internas, com direito a lances que lembram o que ocorria com o sistema eleitoral da República Velha no Brasil.

Achar que isto é positivo, que isto (PED) vai dar naquilo (Corbyn) é uma hipótese, que só poderia ser defendida analisando a experiência recente do PT. Coisa que Vieira não faz.

10) Vieira afirma que o "Syriza deu o máximo exemplo ao PT sobre como enfrentar os impasses da crise política, com diálogo e participação social".

Independente da opinião que tenhamos sobre o que ocorreu nos últimos meses na Grécia, é óbvio que a situação de lá envolve particularidades e dificuldades tão grandes, que converter em "máximo exemplo" para nós é cometer erro de método similar ao que Vieira atribui à ultra-esquerda, acerca do mesmíssimo Syriza.


Claro, o Syriza e a valentia do povo grego devem ser estudadas, há muito o que aprender com elas. Mas daí a transformar em modelo...

11) Vieira diz que "o Labour mostrou, inequivocamente, que o caráter de massas de um partido é solução e deve ser expandido associadamente à sua estrutura profissional interna, não o inverso. Somando as duas lições, grega e britânica, o refrão é "não às soluções tecnocráticas" e não à burocratização traficada como "partido militante"."

Eu não tenho o conhecimento que o Vieira deve ter, acerca da situação inglesa, para usar a palavra "inequivocamente" sobre o presente e o futuro do Labour.

Mas quanto ao passado, é inequívoco que o mesmíssimo Labour foi, até há pouco, colonizado pelos neoliberais.

Portanto, insisto, as formas organizativas de um partido (massas, quadros, militantes, processos eleitorais, relação direção/base) não determinam de per si a política deste partido. 

Quanto as soluções tecnocráticas e a burocratização traficada como partido militante, não sei bem do que Vieira fala, mas sei bem o quanto certos "burocratas" do nosso partido gostam de encher a boca para falar de democracia de massas. 

Mas aí lembro do Vaccarezza e do André Vargas e de como eles financiavam a democracia de massas que eles diziam defender.

12) Vieira diz que "parece que voltou a funcionar a velha alquimia do socialismo europeu, essencial em suas origens, de converter a maioria social trabalhadora em maioria política, mas através de agentes oriundos da própria classe". 

Novamente: preciso saber onde voa o passáro azul que funciona como musa do Vieira. 
Pois mesmo dizendo que "parece", só tal musa justifica o excesso de otimismo de falar da "velha alquimia". 

Por favor, observemos friamente a situação de conjunto da política europeia e da esquerda daquele continente. 


E lembremos de um passado não tão distante, os anos 1980, em que o neoliberalismo dominava ao "Norte" da Europa em certos países e partidos, ao mesmo tempo que ao "Sul" da Europa partidos socialistas chegavam ao governo, despertando esperanças que logo se converteram em decepção.

Adoraria que fosse verdade, mas observando os fatos me soa como um exagero (tipicamente esquerdista, aliás) dizer que "Corbyn é a antessala da renovação das esquerdas europeias". Aliás, lembrem-se das esperanças despertadas por Ken, o Vermelho?


13) Por fim, Vieira fala que a trajetória do PT "foi feita promovendo, consolidando e desenvolvendo o que Gramsci chamava de "intelectuais orgânicos", que não são o mesmo que "intelectuais de esquerda" ou intelectuais filiados ou explicitamente simpatizantes do partido, mas atores e atrizes oriundos da própria classe trabalhadora, que conseguem cumprir os papéis de organização e formulação da classe, libertando-a da dependência em relação aos intelectuais "importados" de outras origens sociais, embora ideologicamente de esquerda. O PT tornou possível, por sua origem e seu êxito como força política alternativa viável, que trabalhadores se tornassem gestores públicos e legisladores".


Quem dera fosse verdade.


Mas, infelizmente, a "intelectualidade orgânica" da classe trabalhadora brasileira me parece muito mais débil do que Vieira descreve. 

Noutros tempos, nossas debilidades foram minimizadas pela situação "vento a favor". Hoje, em que tantos ventos sopram contra, as debilidades ficaram evidentes e se acentuam.

O fenômeno é agravado pela crise do grupo majoritário do PT. 

Parte da intelectualidade orgânica vinculada a este setor do Partido está silenciando, talvez devido a dificuldade de entender o que está ocorrendo -- como aquilo deu nisso? -- e para apontar rumos futuros.

Tomado de conjunto, o contexto atual torna ainda mais difícil a formação de uma "nova geração" de intelectuais orgânicos. Entre outros motivos, porque mudou a classe trabalhadora, mudou nossa relação com a classe trabalhadora e mudou -- para muitos de nós, ao menos-- o lugar de onde refletimos sobre a realidade: tantos anos de governo tem seu preço.

Tudo isto certamente explica, mas não justifica, a reflexão feita por Vieira, neste e noutros textos.

Por fim, falando de lições da Inglaterra, lembro-me de uma: nos anos 1980, eu era professor no Instituto Cajamar, por lá passou ninguém mais, ninguém menos, do que o Eric Hobsbawn. 

No debate após sua palestra alguém perguntou: "professor Hobsbawn, qual é a estratégia para nós aqui no Brasil?" A resposta dele foi mais ou menos assim: "não faço a menor idéia, só voces podem responder esta pergunta".







http://www.teoriaedebate.org.br/index.php?q=materias/politica/licoes-que-chegam-da-inglaterra-e-o-pt

As lições que chegam da Inglaterra e o PT

Ao eleger Jeremy Corbyn como líder, o Labour mostra que o caráter de massas do partido é a solução
O deputado de esquerda, eleito com 59,9% dos votos internos, derrotou as forças de centro e do novo trabalhismo de Tony Blair. Tal desempenho mostra que partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios

Em julho deste ano, escrevi para Teoria e Debate um artigo (http://www.teoriaedebate.org.br/?q=materias/politica/os-verdadeiros-ensinamentos-que-vem-da-grecia) sobre o plebiscito grego no qual afirmava que "a vitória do ‘não’ no referendo grego, no último 5 de julho, não levou a Grécia ao socialismo, como fantasiaram alguns, mas à negociação de condições melhores de seu resgate, o que pode abrir um ciclo de vitórias para as novas (e velhas, porém, renovadas) forças populares europeias".

Pois bem. Eis que Jeremy Corbyn, deputado de esquerda, foi eleito líder do Partido Trabalhista inglês com 59,5% dos votos internos, superando rivais de centro, mas um em especial: Liz Kendall, ligada ao Novo Trabalhismo do ex-primeiro-ministro Tony Blair, que marcou reles 4,5%. O sufrágio ocorreu na semana passada.

Uma lição e tanto para quem analisa a esquerda mundial sob uma visão doutrinária baseada em epítetos, dogmas e preconceitos teóricos. Não foi nenhum grupo propagandista de extrema esquerda ou uma "novidade conectada" que renovou as esperanças dos trabalhadores britânicos, somando-se ao novo impulso para uma esquerda realmente de esquerda na Europa, que promova uma "Europa melhor", como registrou Corbyn. Foi o velho trabalhismo, centenário, profundamente vinculado ao mundo do trabalho e de massas. Um partido nacional e popular, estruturado sobre as lides laborais, mas portador de uma azeitada máquina eleitoral não de hoje – serviu tanto a Clement Attlee, que organizou o Estado de Bem-Estar Social do país derrotando ninguém menos do que Winston Churchill imediatamente ao pós-Guerra, como ao neoliberalismo mitigado de Blair e Giddens, que contagiou os membros da Internacional Socialista no Velho Continente e fez da social-democracia um arremedo, como o visto no poder francês atual ou como sócio minoritário de Angela Merkel, na Alemanha.

Partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar – vide o Partido Justicialista, na Argentina, antes das novas promessas do Labour – e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios e ao que é, suposta e muitas vezes existente apenas na fantasia pós-graduada, seu "espírito social", desgarrado de sua estrutura propriamente dita, a ser fagocitado por este ou aquele "herdeiro legítimo" do tido e havido defunto político organizado como grupos minoritários e, quase sempre, relegados à margem dentro da própria tradição que reivindicam.

Não à toa, o ministro de Defesa de David Cameron, Michael Fallon, afirmou que o “trabalhismo é agora um risco grave para a segurança de nossa nação, a segurança de nossa economia e a segurança de todas as famílias”. Ele sabe que a mensagem do Labour não tem comparação com o impacto provocado por Podemos e Syriza em sua abrangência popular europeia e geopolítica. Sabe que, mais do que incentivar novos agrupamentos críticos à austeridade, pode reencantar o Partido da Social-Democracia Alemã, quiçá o próprio Partido Socialista francês, além de dar maior ímpeto e coragem ao Partido Democrático da Itália – todos com a mesma natureza do Labour. Além do que, tratando-se do principal aliado global dos EUA, pode influenciar na remodelagem do Partido Democrata americano, que, segundo Paul Krugman, vai apostar numa polarização ideológica com os Republicanos, pondo na mesa o papel do Estado no desenvolvimento econômico e social e em outras relações com a América Latina. Temas "perigosos" como o fim dos bombardeios ao Estado Islâmico no Iraque e na Síria, desarmamento nuclear e diálogo com a Argentina com relação às ilhas Malvinas podem mudar o mundo muito mais do que se imagina.

Mas, antes que alguém brade que se tratou de uma vitória "da esquerda" contra a direita partidária e comece a fazer analogias imprecisas, como quando confundiram o Syriza com partidos e agrupamentos críticos à condução do PT, é importante destacar o centro do programa escolhido junto com Corbyn: aumento do investimento do Estado. Este vem se consolidando como o consenso mundial das esquerdas, inspirado por Krugman, Stiglitz e Piketty, no sentido de gerar empregos, retomar o bem-estar e atacar as desigualdades. Sem falar em Lula, antes de todos estes, que empunhou essa bandeira em seus governos e atraiu a atenção do mundo.

Fazendo uma analogia com o cenário brasileiro, o confronto esquerdaversus direita que marcou a disputa no Labour – com êxito da primeira – disse respeito a uma polarização entre a base militante (não apenas filiada) e a coluna vertebral do trabalhismo inglês, o movimento sindical, contra o Labour em seu último governo, com Blair e sua política social-liberal, amparada numa inteligência tecnocrática supostamente neutra.

Só que essa política era amplamente pactuada com a expressão parlamentar do Labour. Logo, é absolutamente incorreto que se diga que a vitória de Corbyn tenha sido das bases contra a burocracia partidária e seus equívocos, por meio de um ajuntamento de correntes antimajoritárias.

O fato é que o Novo Trabalhismo, por sua práxis, deslocou-se organicamente do autêntico Labour do movimento operário e de sua militância diversificada em temas, lutas e opiniões. Destaco isso porque a vitória foi facilitada pela mudança no sistema de votação do partido. Desta vez, o voto, antes restrito aos filiados, estendeu-se aos simpatizantes e valeu a lógica do "uma pessoa, um voto", e não mais a distribuição de pesos para os setores sindical e parlamentar. Disso se reforçou o partido-movimento efetivo, não o partido "estado de espírito", muitas vezes confundido com o primeiro conceito.

Ou seja: o Labour, que já era um partido inquestionavelmente de massas em sua estrutura e funcionamento e em influência política, radicalizou esse processo e, com isso, logrou se reinventar. Não foi umaggiornamento em torno de quadros, intelectuais e dirigentes. Isso diz algo sobre o PT atual e dos resultados do seu V Congresso, em Salvador (BA), quando foi rechaçada a ideia de que o grande Partido dos Trabalhadores e do povo sucumbisse a um clube de lideranças autoproclamadas ilibadas capazes de conduzi-lo para os desafios da grave conjuntura política brasileira.

Se o Syriza deu o máximo exemplo ao PT sobre como enfrentar os impasses da crise política, com diálogo e participação social, o Labour mostrou, inequivocamente, que o caráter de massas de um partido é solução e deve ser expandido associadamente à sua estrutura profissional interna, não o inverso. Somando as duas lições, grega e britânica, o refrão é "não às soluções tecnocráticas" e não à burocratização traficada como "partido militante".

Por fim, outra decisão tomada nas internas do Labour é muito significativa sobre esses processos de reinvenção de partidos nacionais, populares de massas: neste momento em que a Europa discute a crise migratória, cuja amplitude já transformou o perfil demográfico dos países europeus e a composição de sua classe trabalhadora, o candidato à prefeitura de Londres em 2016 será Sadiq Khan, um imigrante paquistanês.
Parece que voltou a funcionar a velha alquimia do socialismo europeu, essencial em suas origens, de converter a maioria social trabalhadora em maioria política, mas através de agentes oriundos da própria classe. Nisso também se parece com o PT, cuja trajetória foi feita promovendo, consolidando e desenvolvendo o que Gramsci chamava de "intelectuais orgânicos", que não são o mesmo que "intelectuais de esquerda" ou intelectuais filiados ou explicitamente simpatizantes do partido, mas atores e atrizes oriundos da própria classe trabalhadora, que conseguem cumprir os papéis de organização e formulação da classe, libertando-a da dependência em relação aos intelectuais "importados" de outras origens sociais, embora ideologicamente de esquerda. O PT tornou possível, por sua origem e seu êxito como força política alternativa viável, que trabalhadores se tornassem gestores públicos e legisladores.

Corbyn é a antessala da renovação das esquerdas europeias num sentido bem mais transcendente: da antiausteridade que velejou o sucesso eleitoral do Podemos e do Syriza rumo a se tornarem playersefetivos do jogo de poder, tendo de administrar governabilidades e propostas concretas para a tomada dos grandes partidos nacionais, operários e populares do Velho Continente.
Está em jogo, assim, uma nova forma – popular, coletiva, criativa, política – de encontrar soluções para a crise europeia, em oposição ao modelo tecnocrático, por exemplo, de Mario Monti, o funcionário da JP Morgan tornado primeiro-ministro italiano, que contamina gestões socialistas hodiernas, como a do presidente François Hollande, egresso da Escola Nacional de Administração da França (ENA).



Leopoldo Vieira foi coordenador do Monitoramento Participativo do PPA 2012-2015 e do programa de governo sobre desenvolvimento regional da reeleição da presidenta Dilma 

Um comentário:

  1. Uma pergunta, posso??? Aliás duas, hehehehe, companheiro.
    Facistas são derrotados?

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