segunda-feira, 2 de junho de 2014

Às vezes é preciso diferenciar a cor dos gatos


Texto publicado na coletânea A esperança é vermelha. 

A história do Brasil é marcada por três grandes traços: dependência externa, desigualdade social e democracia restrita.
Para as classes dominantes, limitar a democracia (inclusive com ditaduras) foi condição sine qua non para que o Brasil pudesse crescer tão rápido, ampliando a desigualdade social.
Pois se houvesse democracia ampliada, poderia haver crescimento com redução da desigualdade, algo que incomoda as classes dominantes.
Uma das causas da vitória de Lula, na eleição presidencial de 2002, é exatamente esta: uma pequena, mas significativa, ampliação das liberdades democráticas, ocorrida desde os estertores da ditadura militar, fez com que as classes trabalhadoras brasileiras tivessem a chance de escolher candidaturas e partidos identificados com seus interesses imediatos e históricos.
Ao lado deste acúmulo de forças por parte da esquerda, tivemos outra causa, muito mais importante: a desmoralização do neoliberalismo tupiniquim e do seu impulsionador-mor, o governo do socialdemocrata Fernando Henrique Cardoso.
Observando historicamente: de 1946 até 1964, apesar das restrições às liberdades democráticas, foi crescendo o apoio popular às esquerdas. O golpe militar de 1964 deteve este processo.
De 1974 até 2002, primeiro na luta contra a ditadura, depois contra a transição conservadora, depois contra o neoliberalismo dos dois Fernandos (Collor e Cardoso), a esquerda manteve e ampliou seus espaços políticos, até eleger o presidente da República.
Considerando que só em 1989 foram restituídas as eleições diretas para presidente, podemos dizer que agora temos 22 anos de democracia eleitoral ininterrupta; mais do que tivemos de 1946 até 1964.
Trata-se do mais longo período de democracia eleitoral ininterrupta na história do Brasil. Em parte graças a isso, elegemos e reelegemos Lula, assim como elegemos Dilma.
Porém, o candidato neoliberal teve 44% dos votos na última eleição. E não existe uma maioria de esquerda, nem mesmo de centro-esquerda, no Congresso Nacional. Apesar dos partidos da base de sustentação do governo Dilma serem a maioria do Congresso Nacional, a maioria da casa é programaticamente de centro-direita.
Além disso, a maioria dos governos estaduais posiciona-se do centro para a direita. E o mesmo pode ser dito dos deputados estaduais, vereadores, prefeitos, de ambos os gêneros.
Não apenas do ponto de vista programático, mas também do ponto de vista social, as camadas populares, os negros, os pobres, as mulheres estão subrrepresentados nos espaços de poder no país.
A super-representação das elites conduz setores importantes da esquerda brasileira a uma armadilha: para obter ou manter nossa representação institucional, fazemos alianças com partidos de centro e de direita, com as decorrentes concessões políticas e programáticas. O que pode levar a esquerda a manter os espaços conquistados, mas sem garantia de ampliação, nem de aplicação de políticas de transformação estrutural. Assim como pode conduzir, no médio prazo, até mesmo à perda daqueles espaços e, mais importante ainda, pode nos fazer perder a condição de esquerda.
Uma pergunta que precisamos responder é: por qual motivo a ampliação das liberdades democráticas – que inclui desde a eleição para todos os postos executivos e legislativos, os movimentos político-sociais como as Diretas Já e o Fora Collor, a adoção de mecanismos de participação popular e controle social do Estado, assim como a auto-organização das classes trabalhadoras – ainda não foi capaz de fazer com que a maioria social se tornasse também maioria política nas instituições do poder?
A resposta está num conjunto de fatores, dos quais cito quatro: 1) o prolongamento do refluxo das lutas sociais, que impacta diretamente nas organizações sociais; 2) o sistema político eleitoral, que não prevê proporcionalidade na composição do Congresso Nacional e estabelece o financiamento privado das campanhas eleitorais; 3) a hegemonia cultural das classes dominantes; 4) o progressivo esgotamento da criatividade petista.
A hegemonia cultural das classes dominantes tem uma importância óbvia. Oito anos e seis meses com presidentes petistas resultaram em avanços materiais, em termos de emprego, salário, crescimento da renda, acesso a serviços públicos etc.
Mas a cultura política do povo não melhorou tanto quanto sua vida material (que, por sua vez, não melhorou o quanto se faz necessário).
A cultura política melhorou, mas melhorou pouco, basicamente porque não foram tocados os principais aparatos de formação de opinião pública, que continuam sendo monopolizados pelos setores conservadores: os meios de comunicação de massa e a indústria cultural em geral; as escolas (que mantiveram seus currículos e sua abordagem essencial); e as igrejas, que no geral se inclinaram ideologicamente à direita, seja em favor do “sucesso individual” evangélico, seja em favor do conservadorismo católico.
Quanto ao progressivo esgotamento da criatividade petista, ele possui causas muito variadas, impossíveis de detalhar aqui. Mas o fenômeno pode ser descrito de maneira muito simples: o PT foi, nos anos 1980, um ponto fora da curva no sistema político brasileiro. E graças a isto, graças a um comportamento muitas vezes atacado como radical, sectário ou excêntrico, elevamos o nível dos desejos, das aspirações, do aceitável.
Mas, ao longo dos anos 1990, parcelas importantes do PT e dos setores políticos e sociais que nucleamos mudaram de atitude. Numa palavra: começaram a fazer todo o esforço para “normalizar” o Partido, adaptando-nos, acomodando-nos aos usos e costumes da política brasileira.
Isto pode ter sido taticamente útil, mas estrategicamente foi e é negativo, seja para o PT, seja para sociedade brasileira, pois como já dissemos o radicalismo petista cumpria um papel inestimável: convenciam pouco a pouco a maioria do povo brasileiro que determinadas heranças, hábitos, costumes, práticas, eram inaceitáveis e precisavam mudar desde a raiz.
Um dos subprodutos desta perda de criatividade que acometeu nosso Partido é o empobrecimento de nossa reflexão sobre o mundo, o continente e o Brasil. Nossa prática anda mais avançada que nossa reflexão. Basta dizer que, surgido da crítica pela esquerda aos limites do desenvolvimentismo, hoje o PT abraçou o desenvolvimentismo sem perceber que as vezes é preciso sim diferenciar a cor dos gatos.
A verdade é que, hoje, nos falta uma teoria petista que sirva de guia para o que estamos fazendo. Em certo sentido, mas apenas em certo sentido, o que estamos tentando fazer na América Latina hoje remete ao que se tentou fazer durante o período da Unidade Popular no Chile dos anos 1970.
Mas não dispomos de um desenho estratégico que norteie a ação concreta dos partidos, movimentos e governos progressistas e de esquerda.
Por exemplo, para permanecer no tema desta palestra: no atual cenário internacional, vamos precisar de forças armadas mais fortes e mais eficientes.
Se não combinarmos esta necessidade, com uma doutrina de Defesa de novo tipo, com um efetivo controle social sobre o Estado, com a defesa dos direitos humanos, com um forte controle civil sobre o aparato militar, com um implacável ajuste de contas com os crimes cometidos durante a ditadura (1964/1985), estaremos fortalecendo um aparato sem controle, estaremos fortalecendo um Estado que ao fim e ao cabo estará a serviço de nossos inimigos, dos inimigos da soberania, da democracia e da igualdade.



Síntese da palestra feita no dia 2 de julho de 2011, no Rio de Janeiro, numa mesa que debateu “Estado, democracia e participação popular”

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