quinta-feira, 29 de maio de 2014

Texto de 2000: Sucesso de público, fracasso de crítica



Quase 6 milhões de pessoas votaram no "Plebiscito Nacional da Dívida Externa", uma iniciativa de igrejas, movimentos sociais e partidos políticos. Dos votantes, cerca de 95% disse não ao FMI, não à dívida externa e não à especulação.

Indiscutível sucesso de público, o plebiscito não passou incólume pela crítica. Na esquerda, houve quem não gostasse da data e/ou das perguntas, tímidas para uns, mal redigidas para outros.

Mas a maior parte das críticas veio da direita: FHC, Pedro Malan, ACM e um sem-número de penas de aluguel atacaram publicamente o Plebiscito, apresentando seis críticas básicas: "a dívida era um problema há 15 anos, hoje não é mais"; "a dívida externa pública vem diminuindo"; "a dívida externa é principalmente privada"; "falar em suspensão de pagamentos prejudicaria os investimentos no país"; "toda a população é credora da dívida pública interna"; "todos os partidos deveriam fazer um acordo em torno dos princípios básicos da atual política econômica".

Falta de memória

Na época em que a ditadura endividou-nos fortemente, Delfim Neto também dizia que os empréstimos não constituiam problema.

Ocorre que todo capital estrangeiro que vem para o país (sob a forma de empréstimo, investimento estrangeiro direto ou capital especulativo), gera uma remessa futura de divisas (a pretexto de lucros, dividendos, pagamento de royalties, importações etc.).

Para conseguir estas divisas, o país precisa gerar gigantescos superávits comerciais (exportar bem mais do que importa). Se isto não for possível, as alternativas são: privatizar as empresas públicas; oferecer vantagens para os investidores estrangeiros, como por exemplo os juros altos; conseguir novos empréstimos ou desvalorizar a moeda.

Ocorre que as privatizações um dia acabam, a desvalorização é uma faca de dois gumes, os empréstimos geram dívida futura e os juros altos aumentam a dívida pública interna. Noutras palavras, o endividamento externo coloca o país diante de uma "bomba-relógio".

Mas antes mesmo da explosão, a dívida já nos causa prejuízo. O "serviço da dívida" –o quanto pagamos de juros e amortização— já constitui uma sangria enorme de recursos, da ordem de 500 bilhões de dólares desde 1979.

Uma privada pública

O governo afirma que a dívida externa é na sua maior parte privada. Mesmo que isso fosse verdade, 90, 100 ou 136 bilhões de dólares (estoque da dívida externa pública em junho de 2000) constituem muito dinheiro em qualquer lugar do mundo.

Trata-se em boa parte de uma "herança" da dívida externa contraída na época da ditadura. Dívida que foi contestada durante os anos 70 e 80, inclusive por Malan e FHC.

O fato desta dívida ter sido "legitimada" pelos governos Collor, Itamar e FHC não impede a população brasileira de contestar sua legalidade, sua legitimidade, bem como o fato dela "já ter sido paga várias vezes".

Por outro lado, é inegável que a dívida externa privada deu um salto enorme, de 55 bilhões de dólares, em 1993, para 141 bilhões de dólares, em 1999. Salto que foi, não por coincidência, acompanhado pelo crescimento da dívida interna pública, que pulou de 60 para 380 bilhões de reais, nesse mesmo período.

A dívida externa privada cresceu porque os grandes empresários pegam empréstimos no exterior, a taxas de juros baixas, e investem no país a taxas de juros várias vezes maiores.

Mas quem determina os juros? O governo! E os juros são mantidos altos sob o pretexto de que o Brasil precisa atrair capitais estrangeiros, que vêm para cá financiar nosso déficit em conta corrente, que não para de crescer entre outros motivos porque mantemos os juros altos.

Por trás deste círculo vicioso, existem fortes interesses financeiros. Os grandes capitalistas se financiam com dinheiro barato, o governo paga a conta. E como faz o governo, para pagar a conta? Aumenta impostos, corta gastos sociais e faz novos empréstimos (turbinados pelos juros altos). Portanto, perdem os "contribuintes" e a maior parte da população.

Vale lembrar, ainda, que quando um grande capitalista pega um empréstimo externo, ele gera uma dívida em dólares. Ele aplica os recursos deste empréstimo aqui no Brasil, onde obtém um enorme lucro em reais, lucro que é pago com o seu, o meu, o nosso esforço.

Na hora de pagar sua dívida externa, supostamente privada, o grande capitalista precisa de maior quantidade de dólares, que são atraídos pela economia brasileira graças a política de juros altos, privatizações, facilidades ao grande capital estrangeiro, salários arrochados para que o país possa exportar produtos mais "competitivos" etc.

Além de vantajoso para os credores privados, o processo de endividamento externo também é útil para os grandes países capitalistas centrais, abarrotados de dinheiro e de mercadorias.

Com uma mão eles nos emprestam o dinheiro, com o qual compramos as mercadorias que eles nos oferecem com a outra mão.

Os marines vem aí?

Se o governo brasileiro adotar uma postura firme no tocante à dívida externa (tomando medidas como auditoria, renegociação soberana, suspensão do pagamento ou não pagamento), poderemos sofrer retaliações.

Mas hoje o Brasil é bem comportado e nem por isso está imune as consequências de medidas unilaterais adotadas pelos Estados Unidos, bem como as retaliações do Império às nossas exportações.

Prejudicaremos a nossa imagem internacional? Mas que imagem é esta, hoje, em que as "agências internacionais de classificação de risco" chegaram a nos colocar abaixo da Colômbia?

Acontece que estas "agências" –além de terem interesse em depreciar nossos ativos-- sabem que o Brasil tem um enorme déficit em conta corrente. No dia que cessar ou se reduzir substancialmente o fluxo de capitais para o Brasil, quebraremos. Portanto, nossa dependência é enorme.

Diante dela, há duas opções: mudar de modelo ou fazer todas as concessões possíveis para continuar atraindo capitais, que aumentam ainda mais nossa dependência de recursos externos.

Eliminaremos uma "fonte de investimento"? Mas qual a vantagem deste investimento internacional, que tem gerado uma saída de dólares (por conta do serviço da dívida, remessa de lucros, pagamento de royalties, ampliação das importações etc.) superior às entradas?
Eliminaremos uma "fonte de financiamento do consumo"? Mas a que custo temos "financiado o consumo"? Qual consumo e feito por quem?

O crescimento das importações, nos últimos anos, é prejudicial à nossa economia. Importamos coisas que poderiam e deveriam continuar sendo produzidas aqui. Precisamos reduzir as importações, ampliar a produção e o mercado interno.

Financiar as importações com endividamento externo só "faz sentido" --como política estrutural-- se as importações gerarem alterações na economia nacional, que ampliem o potencial exportador de nossa economia.

É isso que vem acontecendo? Ou as importações estão substituindo a produção nacional, sem alterar nossa pauta exportadora e nosso potencial comercial?

O Brasil ampliou muito suas exportações, nos últimos anos. Mesmo assim, experimentamos déficits enormes e, mais recentemente, superávits comerciais ridicularmente pequenos. "Abrimos a economia", nos últimos dez anos. Mas nossa participação no comércio internacional continua inferior a 1% do total e caindo.

Importamos desnecessariamente. E fazemos um esforço cavalar para exportar, cada vez mais produtos a um preço cada vez menor. Quem ganha com isso?

Outro modelo

O Plebiscito tão somente perguntava a opinião da população sobre as dívidas externa, interna e o acordo com o FMI. Mas fomos acusados de defender o "calote" das dívidas. Ocorre que o governo considera um "despropósito" ouvir a população a respeito. "Paguem, sem tugir nem mugir", é o que nos dizem.

Na verdade, um "não" à dívida pode ter vários desdobramentos: a auditoria, a renegociação soberana, a suspensão do pagamento, o cancelamento.

O que fazer com a dívida externa? Dar calote? Não achamos que a palavra se aplique ao caso. No caso das dívidas externa e interna, a verdadeira questão é: voce está de acordo em pagar quatro vezes para que outros comam? Ou então: quem leva o cano, para que as dívidas externa e interna continuem sendo pagas?

Não queremos seguir pagando o que já foi pago. Daí a importância de uma auditoria. Também não queremos seguir pagando além de nossa capacidade, daí a importância de outra política econômica, com outra prioridade que não o pagamento das dívidas. Tampouco queremos manter a atual política de endividamento.

Se o atual modelo econômico fosse o único possível, então não poderíamos mudar nada, pois toda mudança provocaria prejuízos enormes e nenhuma vantagem.

Mas e se for possível organizar a economia de outra forma? Se for possível utilizar os recursos da economia brasileira de forma mais "produtiva", socialmente falando? Se isso for possível, então a questão passa a ser: como transitar de um modelo para outro.

A transição do modelo atual, que tem na especulação um de seus pilares, para outro modelo, exigirá quebrar o círculo de ferro do endividamento.

Isso provocará reações dos credores da dívida? Com certeza! Ninguém aceitará perder mais de cem bilhões de reais ao ano, sem fazer nada.

Podemos raciocinar com otimismo e concluir que, após alguns rosnados, os grandes capitalistas se acomodarão a nova situação, para não perder as vantagens de negociar com um país do tamanho do Brasil.

Mas vamos imaginar que eles levem a cabo suas ameaças: cessará o financiamento externo do consumo local; bloqueio de parte das importações e exportações; interrupção dos "programas sociais" alimentados por recursos de organismos internacionais; ataques à "imagem" do país; ferrenha oposição, interna e externa, que pode até desembocar em tentativas golpistas.

Achamos que o país tem como suportar a retaliação dos credores. Grande parte do que nós importamos, pode ser produzido aqui. Existem outros consumidores e fornecedores no mercado internacional, com quem podemos negociar em caso de bloqueio. O "financiamento externo" da nossa economia, ao menos nos termos atuais, causa mais prejuízos do que vantagens.

Se houver vontade política e apoio popular, a resistência é possível. E se o apoio popular e internacional for significativo, a chance de golpismos internos e agressões externas serem vitoriosos, diminui bastante.

Afinal, não se pode desconsiderar o peso geopolítico do Brasil para a América Latina e mesmo para o sistema financeiro. Isto é um trunfo a nosso favor para influir e liderar processos de desmonte dos mecanismos e organismos de agiotagem internacional.

Vale a pena enfrentar a fúria dos credores. Pois a pergunta não deve ser só "o que nos acontecerá, se tomarmos uma atitude firme" (renegociar soberanamente, suspender o pagamento ou não pagar), mas também "o que acontecerá se as coisas continuarem como hoje": mais desigualdade social, mais violência, mais desesperança.

Assustando os setores médios
O governo diz que os credores da dívida "financiam" o governo. E o que faz o governo com este "financiamento"? Paga os credores...

Este círculo vicioso --alimentado continuamente pela taxa de juros-- é um dos principais problemas do envididamento público.

Os números são claros: os credores são, em sua maior parte, grandes empresas. Aliás, grandes empresas "produtivas".

Toda grande empresa brasileira tem na sua carteira títulos do governo. Todo grande capitalista participa da chamada "especulação financeira". Sem dívida pública, o capitalismo moderno seria inimaginável.

A importância que a dívida pública possui, na economia brasileira, produz gravíssimas implicações para a maioria da população. Citemos dois casos.

A atividade econômica é inferior à possível, devido entre outras coisas à alta taxa de juros. Os serviços públicos vão mal, devido principalmente aos cortes promovidos pelo governo, exatamente para pagar a dívida.

O assalariado, o pequeno empresário, o aposentado, a viúva, que aplicam suas pequenas economias, são parte da engrenagem do endividamento público. Mas são parte perdedora, pois --ao contrário dos grandes capitalistas-- os pequenos investidores não têm como se proteger dos efeitos econômicos e sociais do alto endividamento.

Naturalmente, não são os principais perdedores. Os maiores prejudicados são as dezenas de milhões de brasileiros que vivem na miséria, que sobrevivem com um salário mínimo, que estão sem teto e sem terra, os desempregados, os sem escola, os sem saúde.

Só há uma maneira de mudar esta situação: transferir, rápida e radicalmente, renda e patrimônio, dos ricos para os pobres, dos capitalistas para os trabalhadores. E para que isso aconteça, será preciso quebrar a atual estrutura de endividamento. E fazer isso sem penalizar os setores médios.

Quebra de contrato? Com certeza. Sem "quebra de contrato", não haveria independência das colônias, abolição dos escravos, voto universal e secreto, reforma agrária.

A "quebra de contrato", aliás, é algo bastante usual na era neoliberal, inaugurada exatamente por um ato unilateral dos Estados Unidos, declarando a inconversibilidade do dólar em ouro, no início dos anos 70.

No governo FHC, por exemplo, quantos direitos trabalhistas e sociais vem sendo expressa e assumidamente rasgados, em nome da "globalização", da "modernidade", do "livre mercado" etc?

Mais da metade da população brasileira vive na pobreza. Existem menos de 60 milhões de contas bancárias no Brasil. Menos de 20 milhões de cartões de crédito. Está claro que é uma parcela minoritária da população que é credora da dívida pública interna.

Claro que nessa parcela minoritária existem diferenças. O assalariado que ganha 4 mil reais e aplica mil reais, é totalmente diferente dos grandes capitalistas que lucram bilhões e aplicam centenas de milhões.

Justificar a especulação financeira em nome da poupança da classe média, é mais ou menos como justificar o latifúndio em nome da média propriedade produtiva.

Politicamente, trata-se de um expediente eficaz: como sabemos, são os "médios" que formam a massa-de-manobra dos grandes contra os "pequenos".

Mas esse expediente eficaz precisa de uma mentira para
funcionar: no caso da reforma agrária, dizem que todas as propriedades serão atingidas, inclusive as pequenas e médias. No caso da dívida pública interna, fala-se em calote e confisco das poupanças.

Expediente manjado, mas que exigirá da esquerda elaborar de maneira mais precisa qual a política que pretende adotar frente à dívida pública interna, para penalizar apenas os "especuladores".

A busca de um pacto

Malan propôs que todos os partidos, principalmente os de oposição, façam um acordo em torno dos fundamentos da atual política econômica.

Eles querem uma oposição de mentira: oposição às pessoas, não aos modelos.

Que os movimentos sociais e as igrejas defendam um plebiscito para as dívidas e o acordo com o Fundo, isto é ruim mas ainda passa. Se exagerarem, repressão neles. Mas que partidos de esquerda, que podem chegar ao governo, defendam o plebiscito, aí já se torna perigoso.

Pois, como bem sabe Malan, o que está em jogo não é só a dívida. O que está em jogo é o modelo econômico, o que está em jogo é a ordem social que beneficia os grandes capitalistas, nacionais e estrangeiros. Por isso o Plebiscito foi sucesso de público, mas não de crítica. Ainda bem!


Valter Pomar
3º vice-presidente nacional do PT 

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