quinta-feira, 29 de maio de 2014

Hobsbawn, sensei

Texto escrito em 1997.

Sobre história, o livro mais recente de Eric Hobsbawn, reúne um prefácio e 22 ensaios, escritos entre 1968 e 1997, dos quais apenas seis até agora nunca tinham sido publicados. A maioria deles (16) foi apresentada originalmente em conferências, colóquios e aulas magnas.
Diferentemente de outras coletâneas de Hobsbawn, disponíveis em português, esta é “sobre história”, ou seja, reúne ensaios que têm em comum abordarem diferentes aspectos do debate acerca da natureza da história (nos dois sentidos da palavra).
Toda a obra de Hobsbawn é atravessada, explicitamente, por essa preocupação metodológica. Professor desde 1947, organizou seu primeiro livro em 1948 e defendeu sua tese de doutoramento em 1950. Desde então, produz copiosamente. Só no Brasil, teve publicadas as seguintes obras: Ecos da Marselhesa, Capitão Swing, A era das revoluções, A era do capital, A era dos impérios, Era dos extremos: o breve século XX, A invenção das tradições, Da revolução industrial inglesa ao imperialismo, Rebeldes primitivos, Os bandidos, Mundos do trabalho, Os trabalhadores, Revolucionários, Estratégias para uma esquerda racional, além de um livro sobre jazz e da coleção História do Marxismo, da qual foi organizador.
Esta produção, concentrada em dois grandes temas (classes trabalhadoras e história mundial), fez de Hobsbawn um dos mais conhecidos e importantes historiadores da atualidade. O irônico e surpreendente, nesses tempos de renegados e convertidos, é que Hobsbawn nunca escondeu sua dupla condição de marxista e comunista. Situação equivalente, talvez só a de José Saramago.
O marxismo de Hobsbawn não tem nada de pós-moderno: “o que a história pode fazer é descobrir os padrões e mecanismos da mudança histórica em geral, e mais particularmente das transformações das sociedades humanas durante os últimos séculos de mudanças radicalmente aceleradas e abrangentes. Ora, um projeto dessa ordem exige uma estrutura analítica para a análise da história. Essa estrutura deve estar baseada no único elemento observável e objetivo de mudança direcional nos assuntos humanos, isto é, a capacidade persistente e crescente da espécie humana de controlar as forças da natureza por meio do trabalho manual e mental, da tecnologia e da organização da produção. Aqui reside a importância crucial de Karl Marx para os historiadores, porque ele construiu sua concepção e análise da história sobre essa base. E isso significa, basicamente, uma concepção materialista da história”.
Há, mesmo entre os marxistas, quem considere Hobsbawn um “ortodoxo”. Claro que sua ortodoxia nada tem a ver com os manuais, mas para os padrões elásticos atualmente em voga, ele chega a ser chocante. Como ninguém coloca em dúvida a qualidade de sua obra, há duas alternativas: ou estamos diante de um caso de esquizofrenia teórica, ou é exatamente o alicerce “ortodoxo” quem sustenta seu trabalho de historiador.
Além deste tipo de debate teórico, Sobre história contém importantes reflexões sobre a finalidade e as consequências do trabalho do historiador. Em alguns momentos, é como se Hobsbawn estivesse preocupado em oferecer orientações de “ética profissional”.
Por exemplo: no primeiro ensaio, originalmente uma palestra para estudantes, ele diz que “os governos, o sistema econômico, as escolas, tudo na sociedade, não se destina ao benefício das minorias privilegiadas. Nós podemos cuidar de nós mesmos. É para o benefício da grande maioria das pessoas, que não são particularmente inteligentes ou interessantes, não têm um grau elevado de instrução, não são prósperas ou realmente fadadas ao sucesso, não são nada de muito especial. É para as pessoas que, ao longo da história, fora de seu bairro, apenas têm entrado para a história como indivíduos nos registros de nascimento, casamento e morte. Toda sociedade na qual valha a pena viver é uma sociedade que se destina a elas, e não aos ricos, inteligentes e excepcionais, embora toda sociedade em que valha a pena viver deva garantir espaço e propósito para tais minorias. Mas o mundo não é feito para o nosso benefício pessoal, e tampouco estamos no mundo para nosso benefício pessoal. Um mundo que afirme ser esse seu propósito não é bom e não deve ser duradouro”.
O fato é que Hobsbawn possui um sentido muito prático do efeito da história (nos dois sentidos da palavra) sobre as pessoas, inclusive sobre si mesmo, como sabem os que leram a “Introdução” de A era dos impérios, onde ele afirma ser “extremamente improvável que um encontro assim [entre sua mãe austríaca e seu pai inglês, no Esporte Clube dos arredores de Alexandria] tivesse acontecido num lugar assim, ou que tivesse levado ao casamento entre duas pessoas assim em qualquer outro período [anterior] da história”.
Ou ainda: “todo historiador tem seu próprio tempo de vida, um poleiro particular a partir do qual sondar o mundo. Meu próprio poleiro é constituído, entre outros materiais, de uma infância na Viena dos anos 20, os anos da ascensão de Hitler em Berlim, que determinaram minhas posições políticas e meu interesse pela história, e a Inglaterra, e especificamente a Cambridge dos anos 30, que confirmaram ambos”.
Essa percepção aguda e pessoal dá a algumas de suas reflexões um sentido quase melancólico: “Grande parte de minha vida, talvez a maior parte de minha vida consciente, foi dedicada a uma esperança que foi claramente desapontada, e para uma causa que evidentemente fracassou: o comunismo iniciado pela Revolução de Outubro”. Mas, apoiando-se no professor Reinhard Koselleck (para quem “no curto prazo a história pode ser feita pelos vencedores. No longo prazo, os ganhos em compreensão histórica têm advindo dos derrotados”), Hobsbawn conclui que “o fim deste milênio deve inspirar muita história boa e inovadora. Isto porque, à medida que o século termina, o mundo está mais cheio de pensadores derrotados preocupados com uma variedade muito ampla de insígnias ideológicas que de pensadores triunfantes --principalmente entre aqueles com idade suficiente para terem longas memórias”.
Além do debate teórico e da discussão sobre o mister do historiador, Sobre história contém também uma análise sobre os desafios atuais do movimento socialista: “durante a maior parte da história, o mecanismo básico para o crescimento econômico foi a apropriação do excedente social. O crescimento operava por meio da desigualdade. Isso foi compensado, até certo ponto, pelo enorme crescimento na riqueza total. [Os produtores partilhavam dos benefícios] mediante a participação no processo produtivo. Suponhamos agora que a maioria da população não seja mais necessária para a produção. É provável que aumente e intensifique a desigualdade econômica e outras, como a desigualdade entre a maioria supérflua e os demais”.
“Após cerca de 150 anos de declínio secular, a barbárie esteve em crescimento durante a maior parte do século XX e não há nenhum indício de que esse crescimento esteja no fim”.
“O Manifesto Comunista ainda tem muito a dizer ao mundo às vésperas do século XXI. O mundo transformado pelo capitalismo que ele descrevia em 1848 é reconhecidamente o mundo no qual vivemos 150 anos depois. O Manifesto é um documento que levava em conta o fracasso. Esperava que o resultado do desenvolvimento capitalista fosse uma reconstituição revolucionária da sociedade em geral mas, como já vimos, não excluía a alternativa: ruína comum. Muitos anos depois, outro marxiano reformulou a frase como a escolha entre socialismo e barbárie. Qual deles prevalecerá é uma pergunta que devemos deixar para o século XXI responder”.
Tomadas em conjunto, as reflexões sobre a história, sobre os historiadores, sobre os desafios presentes e futuros contidas em Sobre história compõem uma espécie de testamento.
Hobsbawn é apenas o mais destacado dos historiadores marxistas britânicos, grupo que incluiu Maurice Dobb, E.P.Thompson, Cristopher Hill, Rodney Hilton, entre outros que serviram e servem de referência para diversas gerações de historiadores.
Este grupo aprendeu a ver na história “o suor, o sangue, as lágrimas e os triunfos da gente comum, de nossa gente”. Cada qual do seu jeito, todos beberam na fonte do marxismo. Desenvolveram uma cooperação intensa, que prosseguiu mesmo depois que parte deles saiu do Partido Comunista. Eruditos, mostraram-se capazes de trabalho duro, muita pesquisa e uma enorme capacidade de interagir com outros setores da academia. Há quem os considere portadores de uma ou mais tradições teóricas (a esse respeito, seria importante que alguma editora traduzisse Os historiadores marxistas britânicos, de Harvey J. Kaye).
Os marxistas britânicos, entre eles Hobsbawn, constituem hoje uma espécie de “padrão de qualidade” para as atuais e futuras gerações de historiadores. Que enfrentarão um desafio enorme: afinal, se é verdade que “os ganhos em compreensão téorica provém dos derrotados”, é verdade também que as derrotas sofridas pelo movimento socialista nos últimos anos foram intensas, e os danos intelectuais ainda maiores. Como sabe qualquer professor secundário, ou simplesmente alguém que leia sobre a qualidade de nossos livros didáticos, muito esforço terá que ser feito até mesmo para garantir um ensino regular minímo.
Pelo menos no caso do Brasil, a maioria das pessoas, inclusive os estudantes universitários, leem menos e estudam menos ainda. As academias fornecem condições de trabalho excessivamente precárias. As organizações dos trabalhadores (partidos, sindicatos etc) dedicam poucos recursos para o trabalho intelectual. Aliás, parte da esquerda está mais preocupada em ocupar o seu lugar na ordem, do que em subvertê-la, inclusive intelectualmente. Amplos setores regrediram para uma crítica utópica ao capitalismo. Ainda não dispomos de uma análise global do capitalismo contemporâneo, necessária para embasar uma alternativa socialista. Que agora precisa incluir, também, um balanço das tentativas de construir o socialismo ocorridas no século XX.
Nesse trabalho futuro, independente do que ainda nos ofereça, já valem para Hobsbawn as palavras que ele dedicou a Marx, no prefácio de Sobre história: “mesmo que eu achasse que grande parte da sua abordagem da história precisasse ser jogada no lixo, ainda assim continuaria a levar em consideração, profunda mas criticamente, aquilo que os japoneses chamam de um sensei, mestre intelectual para quem se deve algo que não pode ser retribuído”.


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