quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Notas para uma futura resenha


Vale a pena comprar e ler Cypherpunks (Boitempo, 2013), de Julian Assange, Jacob Appelbaum, Andy Muller-Maguhn e Jérémie Zimmermann.

O livro tem três pontos fortes:

1.Desmonta a visão ingênua acerca da internet como o espaço da liberdade

Julian Asssange alerta para a militarização do ciberespaço: Quando nos comunicamos por internet ou telefonia celular, nossas comunicações são interceptadas por organizações militares de inteligência. É como ter um tanque de guerra dentro do quarto. É como ter um soldado embaixo da cama. (p. 53)

Jacob diz ser uma maluquice imaginar que entregamos todos os nossos dados pessoais a estas empresas, e que elas se transformaram basicamente em uma polícia secreta privatizada. E, no caso do Facebook, chegamos a democratizar a vigilância. Em vez de pagar as pessoas, como o Stasi fazia na Alemanha Oriental, nós as recompensamos como uma cultura -agora elas vão para a cama. E divulgam as novidades para os amigos (...) (p. 75)

Andy revela que, na estrutura do banco de dados do Facebook, eles não chamam as pessoas de assinantes, usuários ou qualquer termo do gênero; eles as chamam de alvos... (p. 75)

Julian comenta que a computação em nuvem na prática significa enormes clusters de servidores, montados em uma única localização. (p. 92). 

E nas notas se esclarece que a metáfora nuvem mascara o fato de que todos os dados e metadados dos usuários ficam armazenados em um computador remoto em algum centro de dados, muito provavelmente controlado por uma grande empresa e, portanto, no lugar de o usuário ter o controle total sobre seus dados, alguém detém esse controle. (p. 99)

O livro é bastante esclarecedor sobre o armazenamento em massa dos dados e o caráter de fato público das informações postadas na internet: não importa o grau de publicidade que voce gostaria de atribuir a seus dados, a cada vez que voce clica no botão publicar, dá esses dados primeiro ao Facebook, e em seguida permite o acesso a outros usuários. (p.72)

Esclarecedor, também, acerca de algumas decisões judiciais: segundo um tribunal, na internet, voce não pode ter uma expectativa de privacidade quando voluntariamente revela informações a um terceiro e, a propósito, todo mundo na internet é um terceiro. (p.74)

2.Desmonta a mitologia sobre o caráter democrático dos Estados Unidos

O livro lembra que depois de vencer sua primeira campanha presidencial com uma plataforma de transparência de governo, levou a juízo mais denunciantes sob os termos do Espionage Act do que todas as administrações anteriores juntas.

Julian Assange diz que no Ocidente a coisa é muito mais sofisticada em termos do número de camadas de desonestidade e obscurecimento sobre o que está realmente acontecendo. (p 128)

Especialmente surreal o caso de John Gilmore, que apelou na Suprema Corte contra uma lei secreta, perdeu, tem que cumprir a lei, mas ninguém tem acesso a tal lei, por ser secreta!!!! (p. 140).

3.Confirma a importância da batalha pela internet, incluindo aí a alfabetização digital das classes trabalhadoras.

Julian fala da necessidade de uma população global bastante instruída, deixando claro que não está falando de educação formal. (p. 155)

Isto posto, vamos aos pontos frágeis do livro, ou melhor, do diálogo mantido pelos autores: a economia política e a estratégia política deles é, na melhor das hipóteses, de inspiração anarquista. .

Basta dizer que a alternativa central que eles apresentam é a criptografia, para defender a privacidade contra o Estado totalitário.

Aliás, o debate sobre o público e o privado é feito de maneira confusa, sem que se estabeleça clara distinção entre o privado-individual e o privado-empresarial, entre o Estado-garantidor do público e o Estado-garantidor do privado.

Falei de inspiração anarquista, mas poderia falar também da tradição populista radical presente nos Estados Unidos. É por isto que, numa das passagens mais estranhas do texto, Julian Assange faz uma espécie de elogio ao fato da Constituição dos Estados Unidos conceder aos cidadãos do país o direito de portar armas: as pessoas estão armadas e, caso se irritem o suficiente, simplesmente pegam suas armas e retomam o controle pela força

Embora ele pondere ser necessário refletir se esse tipo de argumento continua válido nos dias de hoje, sua ponderação é devida à evolução dos tipos de armamentos!!! 

O relevante, contudo, está na analogia: ele considera que devemos considerar a criptografia como uma arma que deve ser disponibilizada para todos (p.80)

As reflexões sobre a criptografia são, em algumas passagens, fortemente utópicas: segundo Jacob, a força de praticamente todas as autoridades modernas provém da violência ou da ameaça da violência. É preciso reconhecer que, com a criptografia, nem toda a violência do mundo poderá resolver uma equação matemática.

Julian Assange é mais realista e, por isto mesmo, sua utopia tende à distopia:  a criptografia pode resolver o problema da interceptação em massa que ameaça a civilização do mundo inteiro. (...) Mesmo assim, acredito que estamos lidando com forças econômicas e políticas incrivelmente poderosas, ... e provavelmente o que vai acontecer é que as eficiências naturais das tecnologias de vigilância, ..., nos levarão aos poucos a nos transformar em uma sociedade de vigilância totalitarista global (....) E talvez tenhamos os últimos sobreviventes livres, aqueles que sabem usar a criptografia para se defender dessa vigilância total, e alguns outros (....) neoludistas (página 81)

Já a visão de Jérémie é politicamente frustrante: a idéia é aumentar os custos políticos das más tomadas de decisão (p. 91).

O ponto de partida (a defesa da privacidade contra o Estado totalitarista) repousa numa economia política conservadora. 

Alguns exemplos:

Jacob: talvez queiramos um capitalismo socialmente limitado... (p. 111)

Julian: o mercado precisa ser regulado para ser livre (115)

Andy: voce está dizendo que precisamos de um sistema economico totalmente diferente? Porque nos dias de hoje o valor não émais vinculado ao valor econômico. (....)
Jacob: não estou discutindo se precisamos ou não de um ssitema econômico diferente. Não sou economista (117)

Na falta de uma economia política crítica do capitalismo, não se consegue enfrentar adequadamente o tema central da arquitetura, abordado por Julian: um dos pontos fundamentais que os cypherpunks reconheceram é o fato de a arquitetura efetivamente determinar a situação política, de forma que se tivermos uma arquitetura centralizada, mesmo que as melhores pessoas do mundo estejam no controle dela, essa centralização é um verdadeiro imã de pessoas mal-intencionadas, que usam o poder de maneiras que os designar originais jamais usariam. E é importante saber que a motivação para isso é monetária. (p103)

O momento em que a inspiração anarquista (Proudhon?) fica mais clara é no debate sobre o dinheiro, que para Andy não passa de bits (p. 107)

O debate está nas páginas 108 e 109 e versa sobre dinheiros alternativos (Chaum, Bitcoin). Seu pior momento é a capitulação do próprio Julian, que fala que este dinheiro alternativo pode dar certo quando for adotado pelos provedores de internet e pela indústria de serviços na internet, que então farão um lobby para impedir que ele seja banido (p. 110).

Se falta economia política, falta também uma visão política adequada. 

Exemplo: para Julian Assange, elites nacionais competindo umas com as outras são uma coisa do passado. Hoje elas estão se unindo e se alavancando. (p. 93) Análise que não suporta o que o próprio Julian diz acerca dos conflitos jurisdicionais entre Rússia e EUA, acerca de Visa, Mastercard e Paypal (p.105).

 Outro exemplo: o debate entre Jacob e Julian (pp 96-97) sobre vanguarda: segundo Jacob o movimento peer-to-peer é explicitamente contra tal vanguarda política, enquanto Julian se considera um pouco de vanguarda.

A ausência de uma visão política global, estratégia, talvez explique o desfecho do livro, onde Julian se esforça para falar das potencialidades utópicas, mas ao final parece se render a distopia: as únicas pessoas que serão capazes de manter a liberdade que tínhamos, digamos, vinte anos atrás --porque o Estado de vigilância já eliminou grande parte desta liberdade, nós é que ainda não percebemos isso-- são aquelas que conhecem intimamente o funcionamento do sistema. Então só uma elite high-tech rebelde é que será livre, esses ratos espertos correndo pela ópera. (p. 155-157 -a imagem do rato na ópera remete a algo que Julian viu em Sidney).

Pontos frágeis a parte, o livro é muito interessante.

Mesmo sabendo que as operações do Wikileaks só trouxeram a luz uma pequena fração do contéudo secreto  (p. 146), foram um belo golpe contra a diplomacia secreta, contra os governos secretos, contra a manipulação. Portanto, por este e por outros motivos, Assange e seus colegas merecem toda a solidariedade. E tem coisas muito interessantes a dizer.

E a luta pelo controle da internet efetivamente é parte importante da construção das ferramentas de uma nova democracia.





























































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