sábado, 14 de janeiro de 2012

Síntese da exposição no seminário “Rumo Histórico da Esquerda e o Papel do PT”

Texto divulgado em 3 de junho de 2005.

Inicialmente, quero agradecer o convite para participar desta mesa e quero destacar, também, a importância deste tipo de debate.

O PT precisa investir pesadamente no debate ideológico, programático, estratégico. Se nós não fizermos isso, especialmente neste momento de renovação das direções partidárias, o Partido vai perder sua razão de ser, ao menos para quem é de esquerda e socialista.

É importante lembrar que os partidos políticos não são uma invenção dos trabalhadores, nem são um instrumento exclusivo da esquerda. Os partidos são filhos da revolução francesa de 1789, que foi uma revolução chave na consolidação do capitalismo; e, nos últimos 200 anos, todas as classes sociais e programas políticos criaram seus partidos.

É importante lembrar, também, que há partidos de esquerda que não são socialistas. O conceito de esquerda também é filho da revolução francesa; e nos últimos 200 anos tivemos esquerdas democráticas, esquerdas nacionalistas e esquerdas socialistas.

Nos anos 1970, estas diferenças estavam muito claras. Um debate como esse provavelmente teria como título “o papel do partido de vanguarda na revolução socialista”. Nos anos 1980, o título seria um pouco diferente, algo como “partido, reforma e revolução na luta pelo socialismo”. Nos anos 1990, a chamada seria algo como “a crise do socialismo e os rumos do PT”. Hoje, nosso debate chama-se “Rumo Histórico da Esquerda e o Papel do PT”.

Se nós continuarmos nesse ritmo, em uma década um debate como este será sobre “rumo histórico da centro-esquerda e o papel do partido”. E para quem ninguém ache que estou exagerando, sugiro a leitura do anteprojeto de tese do chamado campo majoritário do Partido, onde se diz que o PT é um “partido democrático de esquerda”, não por coincidência o nome adotado pelos ex-comunistas italianos, que hoje são, assumidamente, um partido de centro-esquerda.

Para evitar que isso aconteça, precisamos de muito debate. E precisamos fazer com que prevaleçam neste debate duas idéias.

A primeira idéia: que o PT continua sendo um partido de esquerda. Nesse sentido, eu acho horrorosas as idéias do ministro Gushiken e do ex-presidente FHC, segundo as quais o PT e o PSDB seriam como que partidos irmãos; idéias que são o pano de fundo da declaração recente do ministro Palloci, fazendo auto-crítica por ter votado, junto com a bancada do PT, contra a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Ao fazer este tipo de comentário e autocrítica, Palloci e Gushiken defendem de fato, na prática, que o PT deixe de ser um partido de esquerda e se transforme num partido de centro-esquerda, ou seja, um Partido que –mesmo tendo os trabalhadores como sua base social e eleitoral prioritária— tem como preocupação fundamental a “boa governança” do sistema, “boa governança” que têm como pressuposto a desigualdade social e política.

A segunda idéia: que além de ser de esquerda, além de ser defensor da democracia e da soberania nacional, o PT é acima de tudo um partido socialista.

O PT precisa ser acima de tudo um partido socialista, porque só a luta pelo socialismo pode livrar a sociedade brasileira e mundial da catástrofe em marcha.

Porque vamos falar claro: desde 1990, vivemos sob uma hegemonia capitalista sem paralelo na história. Antes de 1917, o capitalismo competia com outras formas de organização social. A partir de 1917, o capitalismo passou a enfrentar a concorrência de diferentes tentativas de construir uma sociedade pós-capitalista. Mas de 1990 até hoje, a resistência a hegemonia capitalista está no seu nível mais baixo, historicamente falando.

É claro que há resistência política, social e ideológica. Mas esta resistência, além de estar naquela etapa que o Mao Tse Tung chamava de defensiva estratégica, tem como móvel principal o combate ao imperialismo norte-americano, o combate a financeirização da economia e o combate ao neoliberalismo.

Claro que isto já é muito. O nosso governo federal, por exemplo, não tem conseguido derrotar a hegemonia que o capital financeiro mantém sobre o país. E não tem conseguido, porque a política econômica do governo não está organizada em torno deste objetivo.

Aliás, sugiro de novo a leitura do anteprojeto da tese do campo majoritário: este objetivo não é explicitado ali, como se fosse possível melhorar rápida e substancialmente a vida do povo, recuperar a soberania nacional e ampliar a democracia política no país, com as taxas de juros mais altas do mundo, com um superávit primário maior do que o FMI pedia e  com a transferência anual de 140 bilhões de recursos públicos para pagar compromissos com os bancos.

Mas mesmo aqueles países, movimentos sociais e partidos que têm um claro compromisso anti-neoliberal, anti-financeirização e anti-imperialista, ainda travam uma batalha reativa, contra as manifestações concretas do capitalismo moderno. Mas não é uma luta ofensiva, a favor de uma sociedade globalmente distinta do capitalismo.

E o que o mundo (inclusive o Brasil) colheu nestes 25 anos de esmagadora hegemonia capitalista?

Mais paz? Mais desenvolvimento? Mais prosperidade? Mais democracia? Mais solidariedade? Mais qualidade de vida? Mais respeito ao meio-ambiente?

É evidente que não. Pelo contrário, livre das travas impostas pela força que a esquerda socialista, democrática e nacionalista tinha até os anos 1970, o capitalismo criou um mundo cada vez mais insuportável. Não vou citar números aqui, suponho que sejam do conhecimento de todos. Mas o fato é que a desigualdade cresceu violentamente, a democracia se reduziu e a natureza foi ainda mais agredida, neste último período.

O que fazer para reverter isso?

Lutar, é evidente. Mas a partir de que trincheira e com qual objetivo final nós vamos travar esta luta? Mais exatamente, que tipo de esquerda é capaz de oferecer resistência mais eficaz?

Considero –e a história a meu ver comprova isso-- que é aquela esquerda capaz de fazer uma crítica ao conjunto do status quo capitalista; e capaz de oferecer uma alternativa de conjunto ao capitalismo.

Portanto, o que precisamos, aquilo que o PT precisa ser, é um Partido de esquerda assumidamente socialista. E para acalmar aqueles que acham que isto pega mal ou que perde voto, uma pesquisa contratada pelo próprio PT descobriu que 52% dos brasileiros e brasileiras acham que o socialismo continua sendo uma alternativa para resolver os problemas do país.

Quanto esta pesquisa foi apresentada na executiva nacional do PT, um companheiro se apressou em dizer que o que os entrevistados entendiam por socialismo era “bem-estar”, viver bem ou algo do gênero. É verdade. Mas se esta é a compreensão das pessoas comuns, porque então alguns companheiros têm tanto medo, tanta vergonha, de utilizar abertamente o termo socialismo?

Há várias explicações para esta atitude. Uma delas é que uma parte do nosso Partido não é mais socialista. Continua, ao menos por enquanto, sendo de esquerda. Mas não é mais socialista, seja porque não considera possível derrotar o capitalismo; seja porque não consegue defender o projeto socialista, após o desmanche da URSS.

Outros, mais hábeis, dizem que socialismo é “mercado com democracia política, através da qual a sociedade pode controlar os excessos do mercado”. Noutras palavras, capitalismo com bem-estar social, a velha e boa social-democracia. Não esta caricatura de social-democracia que nos é oferecida pelo Tony Blair e pelo Fernando Henrique.

A social-democracia clássica, dos anos 1950, é uma esquerda que deixou de ser socialista e se conformou com a condição de esquerda “democrática”. Ou seja, aceita o mercado e a propriedade privada capitalista; mas exigia que os capitalistas pagassem altos impostos, que financiavam fortíssimas políticas sociais. 

O problema da social-democracia é que ela depende, em última análise, do funcionamento do sistema capitalista. E o que a história demonstrou é que o capitalismo não suporta uma ampliação permanente, ininterrupta, da qualidade de vida e da democracia. A reação do capitalismo é a redução do crescimento e a financeirização da economia. O que gera desemprego numa ponta e crise fiscal na outra. O que por sua vez cria o ambiente político para que a direita chegue ao governo e desmonte o Estado de bem-estar social.

Esse foi o roteiro da crise da social-democracia na Europa, nos anos 1970 e 1980. E hoje, a social-democracia voltou ao governo em vários países, porque se metamorfoseou em “centro-esquerda”.

Na América Latina, nós não tivemos um Estado de bem-estar social dirigido pelos social-democratas. O Estado populista foi o mais próximo que chegamos disso. E no Brasil, nosso populismo foi muito mais tímido e recuado do que em outros países.

E foi assim, porque o grau de desigualdade social em nosso país é muito maior, por um motivo muito simples. Aqui, nós não tivemos nenhuma grande revolução, nenhuma grande reforma social, que onde ocorreram, puseram limites as classes dominantes.

É por isso que eu não acredito na viabilidade de um projeto social-democrata em um país como o nosso.

Um projeto social-democrata sério pressupõe uma tal transferência de renda, de riqueza e de poder, dos de cima em favor dos de baixo, que isso suporia uma revolução social. E como os social-democratas respeitam a propriedade capitalista como uma espécie de cláusula pétrea, eles por medo da revolução, acabam abandonando a reforma social, deixam de ser de esquerda e se transformam em centro-esquerda ou coisa pior.

Na minha opinião, o que o mundo e o Brasil precisam é de um forte movimento socialista, assumidamente anti-capitalista, que defenda a propriedade pública dos grandes meios de produção, o planejamento democrático e ambientalmente orientado, a cooperação internacional para eliminar a desigualdade e a mais profunda democratização política.

Mas para recompor o movimento socialista, há pelo menos duas grandes tarefas a cumprir.

A primeira delas é de natureza teórica. Trata-se de atualizar a crítica marxista ao capitalismo. O capitalismo atual não é o analisado por Marx, nem o analisado por Lênin. Marx e Lênin seguem sendo fundamentais, mas não são mais suficientes. Até porque a análise da evolução do capitalismo ao longo da segunda metade do século XX até os dias de hoje, é também a análise crítica da primeira tentativa, derrotada, de construir uma sociedade socialista.

A segunda tarefa é de natureza político-social. Trata-se de reconstruir a classe trabalhadora, como sujeito da luta pelo socialismo. Os impactos econômicos, sociais, políticos e ideológicos do neoliberalismo e do desmanche do chamado campo socialista jogaram a classe trabalhadora num ciclo de fragmentação e a enfraqueceram enquanto sujeito histórico da luta pelo socialismo.

Este enfraquecimento gerou, na intelectualidade que acompanhava os trabalhadores, todo tipo de reação. Os melhores caíram no niilismo, no esquerdismo, no retorno a teorias exóticas sobre quem seriam os sujeitos da luta pelo socialismo. Os piores mudaram de lado, como os ex-comunistas Rodolfo Konder (que virou neo-malufista) e Goldman (que virou tucano), para não falar do príncipe dos sociólogos e do ex-presidente da UNE.

Reconstruir a classe trabalhadora é um longo e difícil processo, que deve envolver trabalho político-partidário, mas que precisa necessariamente de políticas de governo. Recomposição salarial, eliminação da precarização, imposição de legislação de proteção ao trabalho, adoção de fortes políticas públicas que melhorem as condições de vida da classe, políticas educacionais, mudança na comunicação de massa, acesso a cultura, recomposição enfim dos laços de classe sem os quais uma ação socialista de massas é impossível.

Evidente que manter o PT como partido de esquerda e socialista, não cria automaticamente as condições políticas necessárias para implementar na sociedade brasileira um projeto de esquerda e socialista. Esse é o equívoco esquerdista, muito freqüente nas críticas que o PSTU e o PSOL dirigem ao PT.

E a recíproca é verdadeira: não se pode argumentar contra o projeto histórico socialista, utilizando como argumento as dificuldades conjunturais que ele enfrenta. Esse é o equivoco de direita, muito freqüente nas críticas que o atualmente denominado campo majoritário do PT dirige aos socialistas do Partido.

É preciso travar cada debate –o programático, o estratégico e o tático— nos seus termos. Mas é preciso, também, perceber que mesmo na conjuntura atual, há ações práticas de sentido socialista, que um Partido e um governo federal como o nosso podem fazer.

Eu já citei, antes, algumas destas ações. Outras poderiam ser citadas, como aquelas que se dirigem a combater o imperialismo, realizar as reformas agrária e urbana, reduzir o peso dos bancos e dos monopólios, inclusive de comunicação.

Mas para concluir minha exposição, vou citar uma outra. Embora haja gente que se iluda com as PPP, o fato é que não haverá crescimento no país sem um pesado investimento estatal; e não haverá desenvolvimento com eliminação da desigualdade, se não houver um pesadíssimo investimento do Estado na chamada área social.

Este pesadíssimo investimento social pode se transformar num dos eixos do próprio crescimento econômico, na medida que impulsiona investimentos e gera empregos, diretos e indiretos. Mas este investimento social não precisa ser direcionado ao objetivo de gerar lucros para o capital. O investimento social, em saúde, em educação, em cultura, em comunicação pública, na transformação de nossas cidades em locais dignos de se viver, pode e deve ser direcionado para elevar as condições de vida do nosso povo, para fazer com que a vida das pessoas comuns seja feliz, seja festa e não sofrimento como é hoje.

Infelizmente o nosso governo, como sustenta estudo divulgado recentemente pelo professor Márcio Pochman,manteve o investimento social no mesmo patamar que o governo FHC. Mas se mudarmos esta situação e direcionarmos grande parte dos 140 bilhões de reais que transferimos, anualmente, para o setor financeiro, estaremos dando uma demonstração inequívoca de que continuamos de esquerda, que continuamos socialistas e que sabemos que o socialismo e a revolução, como dizia o velho e sempre novo Lênin, são no fundo a grande festa do povo.





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