quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Outro capítulo d'A metamorfose

O texto abaixo é a parte final do capítulo intitulado Do governo dos trabalhadores ao superavit primário, parte integrante da tese de doutorado A metamorfose, defendida e aprovada em janeiro de 2006, nunca publicada e disponível somente para download.

É no estudo da luta política e ideológica travada no PT, num contexto histórico internacional e nacional determinado, que encontraremos as bases objetivas e subjetivas da vitória das posições atualmente hegemônicas na esquerda brasileira[1].

Durante o período final da luta contra a ditadura militar, quando a oposição a esta era hegemonizada pelo PMDB, predominou no PT uma concepção organizada em torno do governo dos trabalhadores.

Durante a Nova República, quando o PT se torna hegemônico na oposição e alternativa de governo, predomina no Partido uma concepção organizada em torno do governo democrático e popular, articulado com o socialismo.

Durante o período de hegemonia aberta do neoliberalismo (1994-2002), prevalece no PT uma concepção organizada em torno do governo de centro-esquerda.

A substituição da primeira concepção pela segunda é feita de maneira clara e explícita, na resolução do 5º Encontro Nacional (1987), que critica o governo dos trabalhadores e afirma o governo democrático e popular.

No caso da transição do governo democrático e popular para o governo de centro-esquerda, ocorre diferente: a transição de concepção é anunciada no 10º Encontro Nacional (1995), mas não ocorre de maneira completa. Dois exemplos disto: embora fosse lugar comum, dentro do Partido, de 1995 a 2002, falar em estratégia de centro-esquerda, o termo não é incorporado nas resoluções dos Encontros e do Congresso realizados neste período. Mais ainda: o 12º Encontro (2001) continua a apresentar o futuro governo antineoliberal como um governo democrático e popular.

A transição de concepção é incompleta, por diversos motivos, entre os quais citamos: a dinâmica dos encontros partidários, particularmente cruéis com posições assumidamente moderadas; a redução na qualidade do debate teórico do Partido, nos anos 1990; o fato da estratégia eleitoral ser fortemente tensionada pela presença, no interior do PT e da sociedade brasileira, de um setor que segue reivindicando o socialismo e a revolução; e, claro, as tensões sociais existentes no país, que puxam para a esquerda a retórica partidária.

Entre os motivos da transição incompleta de concepções, destaco a adesão do PT à chamada tática-processo. Grandes definições teóricas são deixadas em aberto, a cargo das lutas, dos trabalhadores, da construção histórica. Outras definições são deixadas a cargo da correlação de forças conjuntural. Vejamos, por exemplo, o que diz o 12º Encontro (2001) a respeito da transição do neoliberalismo para outro modelo econômico:

“(...) A ruptura com o modelo neoliberal envolve mudanças estruturais no país. Uma parte dessas mudanças visa desmontar as armadilhas deixadas pelo modelo neoliberal e também pelo modelo de desenvolvimento implementado na época da ditadura militar. Outra parte das mudanças estruturais visa constituir um novo modelo econômico e social. Nosso programa deve apontar com clareza tais mudanças; e nossa campanha deve buscar um mandato popular para realizá-las. Mas será a correlação de forças concreta, que emergirá das eleições de 2002, que determinará o ritmo e o cronograma de implementação das mudanças (...)”

A questão é: se o ritmo e o cronograma de implementação das mudanças forem demasiado lentos, a noção de transição perde qualquer significado. Ao remeter este tipo de definição para a correlação de forças concreta, as resoluções do Partido escapam de tomar posição clara e explícita sobre diversas questões de fundo, especialmente sobre o que fazer na situação citada no início deste parágrafo.

A correlação de forças deixa de ser um instrumento de análise e passa a ser um argumento fundamental para justificar a transformação analítica, programática e estratégica do Partido, a partir de 1990. Esta transformação corresponderia, portanto, à progressiva adaptação a situações conjunturalmente desfavoráveis, especialmente depois das derrotas de 1989 e 1994.

Acontece que o abrandamento nas posições não se limitou aos aspectos táticos, mas avançou também sobre questões programáticas, estratégicas, teóricas e ideológicas, devido principalmente à crise do socialismo e suas decorrências na análise da sociedade brasileira.

Uma vez que as posições ideológicas e teóricas são alteradas, uma modificação favorável na correlação de forças não produzirá mais as mesmas respostas de antes. Estamos diante de uma metamorfose: o que era vício, vira virtude.

Vejamos como isto ocorreu, entre 1989 e 2002.

Nos anos 1980, o Partido evolui de uma plataforma de natureza reivindicatória, para um programa democrático e popular, que articulava a execução das tarefas inconclusas da revolução democrático-burguesa com as tarefas socialistas.

A polarização dominante, no debate partidário, se dava entre os adeptos de uma estratégia revolucionária e os adeptos de uma estratégia reformista de transformação social. Mas para ambas, o socialismo era o objetivo estratégico.

As eleições de 1989, embora centrais na vida do Partido, não foram avaliadas oficialmente. Mas foi feito um balanço oficioso, que pode ser resumido em duas idéias-chave: uma vitória nas eleições presidenciais só ocorreria moderando o programa e ampliando as alianças; esta moderação é inevitável numa situação mundial de triunfo do capitalismo e desaparecimento da retaguarda do campo socialista.

A questão de fundo –chegar ao governo federal, para fazer exatamente o quê, numa conjuntura que supostamente inviabilizaria o socialismo— foi sendo respondida ao longo dos anos, com sucessivas alterações no programa partidário.

Estas alterações foram feitas sob o impacto da conjuntura e, também, sob o impacto de uma intensa revisão ideológica. A análise crítica da crise do socialismo transformou-se em ante-sala de uma revisão geral do programa e da ideologia socialista que animavam o PT até então. O primeiro passo, moderado e suave, desta revisão foi o documento O socialismo petista. Depois veio o I Congresso, que excluiu do programa petista algo que nunca esteve ali: a ditadura do proletariado. (Iasi, 2004)

Este processo de revisão seguiu seu curso, em três direções distintas, simultâneas e complementares. Reafirmar o socialismo, mas como horizonte. Abandonar o socialismo enquanto alternativa globalmente superior ao capitalismo, transformando-o em missão civilizatória do próprio capitalismo (ou seja, em “valores” socialistas). Identificar socialismo com democracia, economia de mercado e Estado de bem-estar. Ou seja, com social-democracia.

O enfraquecimento do socialismo, como elemento ideológico organizador do petismo, foi acompanhado pela conversão de amplos setores influenciados pelo marxismo, às idéias liberais e keynesianas. Com essas alterações, a polarização dominante no debate partidário, nos anos 1990, passou a se dar entre duas correntes de opinião, ambas reformistas: o reformismo desenvolvimentista e o reformismo social-liberal, com as correntes socialistas (revolucionárias ou reformistas) apoiando as posições expressas pela corrente desenvolvimentista.

Ao longo dos anos 1990, o partido retirou do programa as tarefas de natureza socialista, mantendo as de natureza democrático-burguesas, subordinadas agora ao objetivo de combater o neoliberalismo, não mais com o objetivo de superar o capitalismo. É por isto, por exemplo, que a “reforma agrária” realizada no governo Lula tem uma natureza distinta daquela defendida em 1989-1994.

Como é evidente, esta mutação intelectual possui uma base objetiva: o enfraquecimento relativo da classe trabalhadora, no Brasil e no mundo, vis a vis o fortalecimento da burguesia. Sua possível reversão depende de uma alteração também objetiva. Mas como já foi dito, a construção de outra visão de mundo não é um processo objetivo. Depende, nas condições atuais, não apenas de uma crítica teórica ao desenvolvimento capitalista, acompanhado da formulação de uma alternativa, mas também de uma autocrítica do percurso desenvolvido pelo PT no último período. É nesse enquadramento que o governo Lula e o futuro do PT serão analisados, nos dois próximos capítulos [da tese A metamorfose].






[1] Como salienta César Benjamin, “nos últimos dez anos, nossa esquerda teve uma vanguarda, a Articulação do PT (...) A esquerda brasileira gravitou em torno dessa vanguarda e da estratégia que ela propunha” (apud Demier, 2005).

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