quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Mesmo que tardia

Este texto é uma versão ampliada de artigo publicado na revista Teoria e Debate, após o PED de 2005 e antes do Encontro Nacional realizado em 2006.

Vivemos um período de avanço da esquerda política e social em nosso continente. Um forte sinal disso é a presença simultânea, no governo de seus países, dos presidentes Lula, Chávez, Evo Morales, Michele Bachelet e Tabaré Vasquez. Além de Fidel Castro, como é óbvio.

Este avanço poderá ser aprofundado em 2006, principalmente com o resultado das eleições em El Salvador (março), Peru (abril), Colômbia (maio), México (julho), Equador (outubro) e Nicarágua (novembro). Mas também poderá ser retardado ou revertido, especialmente se perdermos as posições conquistadas no Brasil (outubro) e na Venezuela (dezembro).

Consolidar e aprofundar o giro à esquerda no continente é um dos motivos pelos quais devemos lutar por um segundo mandato presidencial. Há outros motivos: o que fizemos no governo; o que deixamos de fazer, mas que poderemos realizar num segundo mandato; e, principalmente, a onda reacionária que resultaria de uma eventual vitória dos partidos neoliberais. As declarações fascistas e racistas do senador Bornhausen (PFL-SC), as ameaças da deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP) à CUT e os ataques da direita na CPMI da Terra revelam o que nos espera, se algo sair errado.

Em 2006, precisamos mais do que reeleger Lula: necessitamos criar as condições políticas, institucionais e sociais que nos permitam realizar um segundo mandato superior ao primeiro. Um mandato que faça a transição rumo ao “pós-neoliberalismo”.

Isto exigirá mais força institucional, através da eleição de senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais de esquerda, em particular petistas. Exigirá combinar alianças institucionais com uma sólida aliança com os movimentos sociais e com a intelectualidade progressista. Exigirá organizar os setores populares que se identificam com nosso governo e com o presidente Lula.

Finalmente, mas não por último, exigirá uma campanha que aposte na polarização social, política e programática entre o campo democrático e popular e as forças neoliberais. Uma campanha que trate da herança deixada pelos governos tucanos e conservadores, que ataque as alternativas programáticas apresentadas pelo PSDB-PFL, que reconheça as realizações e os limites do governo Lula.

A polarização

As pesquisas comprovam que há uma polarização de classe entre o candidato do PT e o candidato do PSDB. Um de nossos desafios, nesse terreno, é manter o eleitorado popular e recuperar o apoio de setores médios que votaram em nós em 2002 e afastaram-se ao longo dos últimos três anos e meio.

Também está clara a existência de uma polarização política, na disputa presidencial, entre o PT e o PSDB. Um de nossos desafios, nesse terreno, é impedir que se consolide uma terceira via, que num segundo turno teria o apoio dos neoliberais contra o PT -como ocorreu, aliás, na eleição do Rio Grande do Sul, em 2004.

Alguns pensam em fazer isto, realizando desde agora uma aliança eleitoral mais ampla do que aquela com que disputamos o primeiro turno de 2002. Os que pensam isso, defendem somas que subtraem. O caminho para ampliar de maneira consistente está em consolidar a polarização social e política, através da polarização programática, deixando para o segundo turno uma ampliação das coligações eleitorais.

Enquanto existe uma clara polarização social e política, não é tão clara a polarização programática. As opções feitas pelo governo e pelo Partido, até pelo menos meados de 2005, combinadas com os ataques da direita e com a percepção popular da crise, embaralharam as cartas programáticas.

Se quisermos realizar uma campanha militante, que tenha um “núcleo duro” composto pela esquerda política e social, que seja capaz de atrair o apoio dos setores médios e de impedir o surgimento de uma terceira via, precisamos voltar a confrontar o programa democrático e popular com o programa neoliberal.

Este confronto tem quatro dimensões:

a) o debate da herança deixada pelo governo FHC e pelos governos conservadores que o precederam;

b) o debate das realizações e também dos limites do governo Lula;

c) o debate das alternativas propostas, hoje, pela oposição tucano-pefelista e pelos demais partidos;

d) o debate das diretrizes de um segundo mandato de Lula (2007-2010).

Não é preciso dizer que o debate da “herança maldita” é indissociável de um balanço do primeiro mandato de Lula (2003-2006).

O balanço

Um balanço completo do governo Lula é uma tarefa para o futuro, seja porque o governo ainda não concluiu seu mandato; seja porque o viés deste balanço dependerá em parte do resultado da eleição de 2006; ou ainda porque um balanço completo envolverá a reconstituição sistemática da ação do governo e uma análise comparada com outros governos similares ao nosso.

Este balanço deverá levar em conta o contexto histórico em que atuamos, marcado pela hegemonia neoliberal, pela crise do socialismo, por uma secular dívida social e democrática, bem como pelo refluxo das organizações e da luta da classe trabalhadora, inclusive do ponto de vista ideológico.

Tendo em conta tudo isto, o balanço que podemos e devemos fazer agora tem um caráter assumidamente instrumental, a saber, servir de subsídio para a elaboração das diretrizes do programa de governo 2007-2010 e, também, como elemento de coesão da militância, para que abrace com vontade a missão de vencer as eleições de 2006.

Nosso desafio é apresentar um balanço crítico (sem o qual não haverá como avançar, como fazer algo melhor), mas ao mesmo tempo capaz de sustentar a defesa do voto em Lula e nos demais candidatos do PT.

Defender o governo Lula não é apresentar um rol de suas realizações, embora suas realizações possam constituir um elemento da defesa do governo. Defender o governo Lula também não é exagerar no balanço positivo das ações da administração federal.

Claro que há os que pensam que, frente a um balanço negativo ou simplesmente realista, só restaria como alternativa fazer oposição.

Neste sentido e paradoxalmente, este “governismo acrítico” compartilha com o esquerdismo do PSTU e PSOL um pressuposto básico: acreditar que a defesa do voto em Lula, em 2006, decorre única ou principalmente de realizações positivas de seu governo. É como se dissessem: “Se o governo não for o máximo, não merece ser defendido”. Não percebem que a necessidade de derrotar a direita e a possibilidade de construir um futuro diferente também são fatores de motivação.

É preciso reafirmar o óbvio: num país e num mundo que seguem sob a hegemonia do capital financeiro, do imperialismo e das idéias neoliberais, nossa presença no governo, mesmo com todas as limitações, é objetivamente positiva, seja porque deslocamos forças políticas e sociais que ocupavam o governo durante o tucanato, seja porque detivemos ou retardamos processos que estavam em curso no governo anterior (o programa de privatizações, a repressão aos movimentos sociais, a adesão acelerada ao Alca).

Por outro lado, faltou ao governo Lula ter e seguir um plano estratégico que tivesse como objetivo superar a hegemonia neoliberal.

Este objetivo estava explícito nas resoluções do 12º Encontro Nacional do PT, que falava em ruptura com o neoliberalismo. Estava presente até mesmo nas posições que, em 2003, falavam de uma transição de modelo. Mas nunca chegou a fazer parte da prática — além de desaparecer rapidamente do discurso — da mal-denominada “área econômica”, cujos encarregados, ao invés de ruptura e transição, passaram a praticar um ajuste fiscal permanente e a falar de “déficit zero”.

Isto não seria tão grave, se, desde 2004 e até o final de 2005, a Fazenda e o Banco Central não tivessem sido alçados à condição de “pilares” do governo, competindo inclusive com o presidente eleito.

Como a política monetária desenvolvida pela Fazenda contém medidas inegavelmente impopulares — tais como as altas taxas de juros e superávit primário, cortes e contingenciamentos de verbas orçamentárias, redução nos investimentos etc. —, isso contaminou o conjunto do governo com um discurso e uma prática que colidiam pesadamente com as expectativas das bases partidárias, eleitorais e sociais do campo democrático e popular.

Este conflito (que se tentava minimizar falando dos efeitos positivos da contenção da inflação) veio num crescendo desde o início de 2003, em parte devido ao enorme êxito com que a Fazenda e o Banco Central transferem recursos da sociedade brasileira para o capital financeiro, através da taxa de juros e do superávit primário.

Esta transferência é tão intensa, que confere à política do BC e da Fazenda total predomínio sobre o conjunto do que podemos denominar de “política econômica do governo”. Como resultado, se adia não apenas a ruptura, mas inclusive o enfrentamento conseqüente da hegemonia do capital financeiro sobre a economia nacional.

É claro que há componentes contraditórios na política econômica, que permitem a aventura de tentar defendê-la “pela esquerda”, citando, entre outras medidas de reconstrução do Estado e de sua capacidade de planejamento, a interrupção do programa de privatizações, a política energética, a recuperação e a política de crédito barato dos bancos públicos, os saldos na balança comercial, a relação dívida/PIB.

Isso para não falar do “argumento” segundo o qual os “fundamentos” da política econômica estariam corretos, havendo problemas e exageros na “operação”. Ou a propaganda entusiasmada do pagamento antecipado da dívida com o FMI e da recompra de títulos.

Em todas estas medidas há um pouco de verdade e de efeitos positivos; ocorre que, tomadas de conjunto, não conseguem quebrar a lógica imposta, pelo capital financeiro, a toda a sociedade brasileira.

As medidas de reconstrução da capacidade de intervenção e planejamento do Estado são lentas frente às necessidades e não conseguiram alterar qualitativamente a situação armada pelo governo FHC.

Uma aceleração da reconstrução do Estado dependeria de investimentos que vem sendo contidos, há muitos anos, pelo endividamento, pela matriz tributária, pelo contingenciamento orçamentário, pelo superávit primário e pela taxa de juros.

É verdade que o programa de privatizações de estatais foi interrompido, com algumas exceções e sem auditoria nem reversão das privatizações feitas. É verdade também que na área energética, Petrobrás inclusa, há ações importantes sendo desenvolvidas.

Mas não se deve esquecer que as “agências” seguiram funcionando e algumas ex-estatais, agora privatizadas, mantiveram enorme autonomia, por exemplo, na definição de tarifas, que impactam a taxa de inflação. Ademais, o governo manteve a política dos leilões e das concessões; e busca institucionalizar as chamadas “parcerias público-privadas”, revelando uma ilusão nas possibilidades do setor privado de alavancar um novo ciclo de investimentos, quando sabemos que só o Estado tem os meios para deflagrar um novo ciclo de crescimento de médio e longo prazo.

Este mesmo problema de fundo está presente na lei recém-aprovada, que transfere a gestão das chamadas florestas nacionais ao setor privado; nas facilidades concedidas às fundações privadas que atuam nas universidades públicas;  bem como no ProUni, apesar de este vir embalado por um forte e sedutor discurso social.

Os comemorados saldos na balança comercial, por sua vez, são oriundos de um conjunto de variáveis, desde uma conjuntura internacional favorável até a precariedade do mercado interno, incluída a baixa remuneração da força de trabalho. Erram os tucanos que atribuem os saldos apenas à fortuna, mas também erram os que os explicam pela virtu.

Ademais, a existência de saldos positivos não configura, de per si, algo necessariamente ou apenas positivo do ponto de vista macroeconômico. Basta lembrar os efeitos causados pelo excesso de dólares na economia, com a valorização conseqüente do real. Ademais, cabe responder algumas perguntas incômodas: o que é feito com as divisas obtidas? Qual o impacto do “sucesso exportador” na estrutura sócio-produtiva? Qual a pauta de exportações e como isso localiza o país na “divisão internacional do trabalho”?

Quanto à redução na relação dívida/PIB, custou um enorme esforço social, mas ainda não nos tirou do patamar herdado do governo anterior (relação acima de 50%).

O serviço da dívida pública faz a festa, dizem, de umas 20 mil famílias, naquilo que críticos sérios denunciam como uma “política social regressiva”. Neste contexto, os recursos empenhados no pagamento antecipado da dívida com o FMI e na recompra de títulos bem que poderiam ter tido outro destino.

Sobre a estabilidade monetária (pois não se pode falar em “estabilidade econômica”, num país cuja taxa de juros é das maiores do mundo), não faz sentido comemorá-la como um “fundamento” enfim respeitado.

O governo soviético, logo após a revolução de 1917, defendia a importância de manter estável o valor do rublo. Noutras palavras, a busca da estabilidade do valor da moeda pouco informa acerca do conteúdo da política estatal em vigor. Salvo, é claro, se estivermos diante da gangue de mitômanos e monomaníacos monetaristas e agora neoliberais, que faz do combate à inflação uma obsessão a ser satisfeita em detrimento de todas as outras variáveis, exceto é claro o serviço das dívidas financeiras.

Outra orientação

A tarefa central de nosso governo era e segue sendo servir de ponto de apoio para a construção de um Brasil pós-neoliberal.

Esta não é uma tarefa “econômica”, pelo contrário: derrotar a hegemonia neoliberal exige construir uma contra-hegemonia política e cultural, sem o que não se conseguirá destronar a ditadura do capital financeiro.

Por isto mesmo, nunca poderíamos ter deixado o governo ficar prisioneiro dos limites, tanto do discurso quanto da ação assumidamente continuísta do Ministério da Fazenda e do Banco Central.

As melhores áreas do governo são exatamente aquelas, como a política externa e a cultura, onde se conseguiu manter algum nível de autonomia, pelo menos frente ao discurso economicista.

Nosso segundo mandato necessita, portanto, muito mais do que outra política econômica. Precisamos de uma nova orientação política global, que parta de alguns pressupostos:

a) no Brasil e em toda a América Latina, continua posta a tarefa de superar a hegemonia neoliberal, nas suas três dimensões: o domínio imperial norte-americano, a ditadura do capital financeiro e a tara do Estado mínimo, cujo enfrentamento exige aprofundar e radicalizar as iniciativas de integração latino-americana e caribenha;

b) duas décadas perdidas, uma delas de hegemonia neoliberal, produziram uma tragédia que está longe de ser debelada e que só o será através de reformas estruturais e de políticas sociais universalizantes;

c) é preciso democratizar radicalmente o país, o que inclui mudanças no modelo de Estado, mecanismos de controle social, reforma política, combate ao monopólio dos meios de comunicação, fortes políticas de cultura e educação;

d) precisamos de um desenvolvimento centrado na ampliação do público e do social, da produção e do mercado interno de massas, o que exige vultosos investimentos estatais em infra-estrutura, políticas sociais e reformas estruturais (com destaque para as reformas agrária e urbana). O PPA deve apontar, desde já, para o crescimento do orçamento destas áreas, em detrimento dos encargos da dívida financeira;

e) o Banco Central deve perseguir metas combinadas de inflação, crescimento e emprego. As taxas de juros determinadas pelo Copom devem ser compatíveis com as metas de crescimento e emprego. A redução da relação dívida/PIB será buscada, não através de altas taxas de superávit primário, mas sim através do crescimento do Produto Interno.

Os limites

Amplos setores do partido gostariam de aproveitar o 13º Encontro para fazer um balanço profundo, seja da crise que vivemos em 2005, seja da nossa experiência de governo.

Outros gostariam, também, de travar um debate sobre a concepção, o funcionamento e a estratégia do Partido.

Todas estas questões são relevantes e é fundamental que o Partido as enfrente. Como já disse noutro lugar, é preciso desmontar um enorme edifício programático e ideológico, construído ao longo dos últimos dez anos.

Mas o espaço para travar este debate, na profundidade necessária, será o III Congresso do Partido, que deve ser realizado em 2007.

No 13º Encontro, marcado para abril deste ano, aquelas e outras questões serão tratadas, mas de maneira coerente com o objetivo central do Partido em 2006: vencer as eleições presidenciais.

Falando claro: não será agora que faremos o necessário acerto de contas com as concepções estratégicas que vigoraram no PT entre 1995-2005. Esta é uma tarefa a ser perseguida depois da vitória. A tarefa da hora é impedir que a coligação neoliberal (PSDB-PFL) reconquiste o governo. O que, aliás, nos ajudará a deixar para trás a política conduzida pela dupla Palocci-Meireles.

Precisamos de uma política comprometida com a integração nacional, com a democratização política e com a mudança do modelo econômico e social, num sentido pós-neoliberal e com um horizonte socialista.

Este deve ser o sentido das diretrizes do mandato 2007-2010: iniciar a transição, mesmo que tardia, em direção ao “pós-neoliberalismo”.



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