sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Um livro que não foi publicado

O título previsto era Articulação de Esquerda 1993-1998. Artigos e Resoluções.

O prefácio diria assim: Esta coletânea reúne os principais documentos nacionais produzidos pela Articulação de Esquerda, desde o manifesto A hora da verdade (1993) até as resoluções adotadas em 1997. Reúne, também, alguns artigos que influenciaram os militantes que deram origem à tendência. Por razões técnicas,não foi possível incluir nesta edição outras contribuições, como as de César Benjamim (Decifra-me ou te devoro), David Capistrano (Tudo que é insólito desmancha no ar), Sérgio Amadeu (Preocupações de um petista), Carlos Eduardo Carvalho, Claus Germer, Wladimir Pomar e Jorge Branco. Estas lacunas não prejudicam o objetivo desta coletânea: permitir, aos militantes do PT, uma visão de conjunto sobre as posições da Articulação de Esquerda nos seus primeiros quatro anos de vida.

A coletânea incluiria os seguintes textos: Manifesto aos Petistas, Carta aos delegados da Articulação, O melhor ainda está por vir, À militância do Partido dos Trabalhadores, Tarefas para o próximo período, Balanço das eleições de 1996, Balanço do 11º Encontro Nacional do PT, Balanço do 6º CONCUT, Uma Estratégia Socialista para o Brasil, Resoluções Organizativas, Noventa e três e os próximos anos, O poder, cadê o poder?, Alguns desafios do PT para 94.

Alguns destes textos foram aproveitados na coletânea intitulada Socialismo ou Barbárie. Mas o livro previsto não foi publicado, estando agora disponível para consultas no endereço www.pagina13.org.br.

A seguir, um dos textos, este de minha autoria:

Noventa e três e os próximos anos 

Um fantasma ronda o PT: o fantasma do comunismo.
Não o comunismo de que falava Marx,
 mas sim um comunismo pragmático,
eleitoreiro, reformista, típico do velho Partidão.

Comentando a escolha de Wladimir Palmeira para líder do Partido dos Trabalhadores, o deputado José Genoíno teria afirmado que, “com isso, o PT assume uma tendência esquerdizante. Estou preparado para ser minoria”. Dando o troco, o também deputado Jacques Wagner teria dito: “Me surpreendo. Então, ele está à direita?”(l).
A disputa pela liderança foi decidida por apenas l voto, pouco tempo depois da direção nacional do PT aprovar, pela mesma diferença, uma resolução que estabelecia um posição mais nitidamente oposicionista do PT frente ao governo Itamar.
Naquela ocasião, Paulo Delgado e José Genoíno deram entrevistas à grande imprensa, externando publicamente seu inconformismo com a posição majoritária na direção nacional. Numa linha semelhante, o secretário-geral do partido, José Dirceu, afirmava que a resolução fora aprovada por uma “maioria eventual”. O que mereceu uma resposta de Jacques Wagner (para quem maioria eterna só no stalinismo) e de Wladimir Palmeira e Sérgio Gabrielli, no Linha Direta, onde diziam que “quem assegura a governabilidade é o governo. Não cabe ao PT priorizar a estabilidade. Esta é uma tarefa dos conservadores. Cabe ao PT priorizar as mudanças”(2).
Os dois episódios mostram que o partido está, além de dividido, polarizado. Mostram também que, cada vez mais, o debate partidário será travado publicamente.
Não há porque temer isto. O PT tem influência cada vez mais decisiva nos rumos da política brasileira. É natural que isso se reflita no partido, inclusive através do acirramento da luta interna e do debate público entre suas várias tendências.
Curiosamente, a tendência majoritária do PT, a Articulação, não tem conseguido debater organizadamente as divergências presentes no partido, que são suas também. Isso apesar de termos nos dividido, ou termos sido divididos, na maioria das questões polêmicas. O que, na época dos encontros partidários, cria situações cada vez mais desconfortáveis, com a formação de maiorias para as disputas de direção que correspondem cada vez menos às maiorias formadas em torno de questões programáticas.
Essa situação, além de incômoda, é insustentável e danosa para o partido. Ademais, do ponto de vista do autor destas linhas, é muito desagradável ver a Articulação ser coletivamente responsabilizada pelas posições expressas por certos “notáveis”.
Se a Articulação enquanto tal — ou seja, os militantes que a integram— ainda quiser influenciar coletivamente a vida partidária, então ela terá de travar aquele debate. Esse é o objetivo deste texto: estimular os companheiros da Articulação a promoverem uma discussão organizada sobre as nossas divergências políticas.
Como a leitura deixará evidente, este texto não é uma tese, mas apenas um apanhado acerca do que me parece ser o nó do problema: um setor do partido está formulando e aplicando, à revelia das resoluções do partido e das deliberações do lº Congresso, uma nova linha política, muito semelhante às propostas (derrotadas) do chamado “Projeto para o Brasil”.Infelizmente, os defensores da “nova linha” —que de nova tem muito pouco— não a submeteram ao partido, que vem tomando conhecimento dela aos poucos, através de declarações à imprensa, resoluções pontuais da direção e atitudes políticas surpreendentes para os padrões petistas.
Isto já é suficiente, contudo, para estabelecer a polêmica, de resto extremamente urgente. Afinal, para o partido atuar unificadamente nos próximos anos, será necessário que o 8º encontro nacional debata em profundidade as divergências em relação ao governo Itamar, ao programa econômico de emergência e, inclusive, os contraditórios resultados das eleições municipais —que, se demonstraram nossa força e potencialidade, evidenciaram gravíssimos problemas, que ajudam a entender as derrotas em várias administrações petistas, as dificuldades enfrentadas no estado de São Paulo, os resultados eleitorais abaixo das expectativas etc.

Na encruzilhada

1992 deve ficar na história como o ano da “ética na política”. Mas poderia ser lembrado, também, pelo massacre do Carandiru, pelos arrastões, pela vitória de Maluf na eleição paulistana e pela “absolvição” de Quércia na CPI da Vasp.
Esses sinais contraditórios revelam os limites de um país que vem aperfeiçoando sua institucionalidade democrática, mas que continua hegemonizado por uma elite conservadora, num contexto de deterioração cada vez mais aguda das condições de vida da maioria da população.
É improvável que essa situação ambígua prossiga indefinidamente. Mesmo Francisco Weffort, insuspeito de radicalismos, pensa que “são pequenas as chances de sobrevivência da democracia em países que passam por severa e prolongada crise econômica. No Brasil continuamos sem rumo, afundando no pântano de uma permanente crise de governabilidade”(3).
Este problema não é só nosso, nem se restringe ao chamado Terceiro Mundo. Uma de suas consequências é a marginalização econômica, política e social de um setor bastante significativo da população, o que, num contexto de crise do socialismo, tem fortalecido não exatamente a direita tradicional, mas principalmente movimentos, partidos e candidatos que se apresentam como não-políticos, extra-políticos, anti-establishment: Ross Perot, Fujimori, Collor, o nacionalismo e o neonazismo são expressões (diferenciadas, é claro) disso. Quanto à direita tradicional, vem tentando se reciclar, adotando um discurso populista (como fez Maluf).
É evidente que esta nova situação impõe ao PT a necessidade de atualizar sua política. Mesmo com as lacunas conhecidas, foi isso que tentamos fazer no lº Congresso. Entretanto, as posições mais à direita, derrotadas naquela ocasião, são as que parecem ter maior influência no interior da direção partidária, resultando numa política cujos principais elementos são: o privilégio concedido à institucionalidade, em detrimento da mobilização e organização social; uma política de alianças que perde de vista a necessidade de manter diferenciado o perfil partidário; uma ação governamental que desvincula as dimensões política e administrativa, privilegiando esta última; uma concepção de construção partidária anti-democrática, que facilita a diluição das instâncias, que não colabora para reduzir a distância entre direção e bases, que facilita a autonomização dos “notáveis”, a quem se reservam as grandes decisões, à revelia ou inclusive contra as bases; uma concepção que desestimula a ação partidária nos movimentos sociais; um discurso ideológico que abandona progressivamente os valores socialistas, em favor de valores social-democratas e até liberais; e uma estratégia que não apenas perde de vista a necessidade de rupturas revolucionárias, mas que parece apostar num inexistente espírito democrático e legalista das elites brasileiras.
Como sub-produto desta política que joga suas fichas no jogo institucional, em detrimento da organização social e partidária, crescem a falta de ética, o aparelhismo, o desrespeito à democracia, o cupulismo, a disputa de feudos entre parlamentares.

A integração à ordem

A militância está cada vez mais preocupada com a possibilidade de o PT se transformar num partido igual aos outros. O processo está apenas no início, mas já provoca desencanto, angústia, perplexidade e falta de perspectivas em muitos petistas.
O que será de nossa democracia interna, se é cada vez maior a distância entre a base e a direção? O que será de nosso projeto coletivo, se tantas personalidades do partido priorizam seus projetos pessoais? O que será do partido das transformações sociais, se nossa ação política é cada vez mais ditada pelo calendário eleitoral e pelos limites institucionais? O que será de nossa organização de base, se cada vez se dá menos atenção à relação com os movimentos sociais? O que será de nossa unidade de ação, se boa parte do tempo de nossos sindicalistas é gasto em lutas internas, onde se admite todo tipo de baixaria? O que será da diferença, se começamos a realizar alianças que oa parte do tempo de nossos sindicalistas é gasto em lutas internas, onde se admite todo tipo de baixaria? O que será da diferença, se começamos a realizar alianças que diluem o nosso perfil? O que será do socialismo, se o apresentamos como algo distinto da modernidade e da cidadania?
Para deter a desagregação partidária, não basta, ainda que seja necessária, uma reforma ética. É preciso, antes de mais nada, uma reorientação política. Porque os desvios éticos presentes no PT alimentam-se de uma estratégia eleitoreira, que pretende construir um partido de notáveis e que sucumbe aceleradamente diante da ilusão que encantou o Partido Comunista: a crença na vontade democratizante e reformadora da burguesia brasileira.
Nosso partido está ameaçado, hoje, pelo mesmo mal que vitimou outros partidos de esquerda, que não conseguiram resistir às pressões e à força do status quo, transformando-se em força auxiliar de partidos burgueses —como aconteceu com os comunistas durante a Nova República— ou sendo simplesmente cooptados. Este é o caso dos socialistas, comunistas (e inclusive petistas) que se deixaram engolir pelo PMDB. Descrentes na capacidade de mudança a partir de baixo, superdimensionando as posibilidades da ação institucional/estatal, importantes segmentos do PCB, do PCdoB, do MR-8 etc. terminaram convertendo-se em quadros orgânicos da burguesia, particularmente do quercismo. Um fenômeno similar ameaça hoje o PT, favorecendo as tendências gradualistas, reformistas, eleitoreiras.
Nossa ligação “com as bases”, antídoto natural para os riscos da cooptação, não parece mais ser suficiente. Além daqueles laços estarem fragilizados, já faz tempo que o centro de gravidade da ação partidária reside nos governos, nos parlamentos, nos processos eleitorais.
Extremamente positiva, a força institucional do PT contém contrapartidas: l)cresceu o número de militantes envolvidos na institucionalidade, como parlamentares, prefeitos, assessores, secretários municipais etc., ao mesmo tempo em que se reduziu a participação da militância não-profissionalizada; 2)aumentou o tempo dedicado pelo partido —seus militantes e dirigentes— às questões institucionais, especialmente eleitorais, ao mesmo tempo em que se reduziu nossa ação organizada junto aos movimentos sociais; 3)cresceu a dependência política e financeira do partido frente ao Estado, ao mesmo tempo em que se reduziram as contribuições militantes.
Na ausência de mecanismos que compensassem estes fenômenos, modifica-se progressivamente o perfil do partido, reduzindo-se a sua sensibilidade diante dos temas populares e sua ligação com os movimentos sociais. Pouco a pouco, o PT elitiza-se.
O movimento sindical cutista também experimenta um processo semelhante. Cresce o peso das máquinas sindicais, dos aparelhos, do número de profissionalizados —sem que isto corresponda a uma ação mais orgânica, a uma maior organização de base—, num ritmo ainda mais intenso do que o experimentado pelo partido. Note-se que a estrutura partidária continua muito aquém do necessário e muito inferior ao porte do braço sindical e do braço institucional.
Este processo de institucionalização resulta de nossas vitórias parciais, e seria pura ingenuidade imaginar que o PT pode crescer sem modificar-se. Maior ingenuidade, entretanto, é só enxergar o lado positivo da institucionalização. É o que acontece com parte da militânca, que superestima o papel das disputas eleitorais, em relação a outras dimensões da luta política, social e ideológica. É em boa parte por isto, aliás, que há pré-candidatos ou candidatos capazes de comer o fígado de companheiros, para viabilizar suas pretensões, mas sempre achando que agem em nome da causa...
Como resultado, o partido perde espaço frente ao candidato, a militância perde peso diante do eleitorado, o programa corre o risco de se converter numa peça eleitoral, o eleitoralismo estimula o individualismo e a atomização da política, servindo de porta de entrada para comportamentos que a prática parlamentar ou governamental terminam solidificando.
A falta de solidariedade, o individualismo e o vale-tudo cresceram no PT à medida que cresceram nossos laços com a institucionalidade. Mas só se tornaram um fenômeno ameaçador quando foram potencializados pela crise do socialismo, pela exaltação dos valores neoliberais, pelo clima de salve-se quem puder típico dos períodos de recessão e também pelo fortalecimento, dentro do partido, dos setores que defendem uma estratégia eleitoreira.
Por isto achamos que superar a falta de solidariedade e o individualismo; combater as mentiras e o mandonismo; extirpar o clima de desconfiança e reestabelecer a democracia interna; evitar que as eleições sindicais sejam tomadas pelos métodos burgueses de disputa; restaurar a solidariedade partidária, socialista e petista... tudo isto exige a criação de anticorpos que minimizem a absorção do partido pela institucionalidade; exige restaurar a estratégia democrática e popular, que não se resume em eleições; exige combater a estratégia eleitoralista, que estimula a atomização da ação partidária, o individualismo e o privilégio para os eleitos e mandatários.
Exige, inclusive, a adoção de uma ética que não se limite ao comportamento dos políticos frente à coisa pública, mas que inclua entre seus temas o combate à miséria, à marginalidade, à pobreza —tudo aquilo que Cristovam Buarque chama de “ética das prioridades”.
Naturalmente não podemos nos iludir: numa sociedade como a nossa, é impossível construir um partido puro, imune ao que acontece a seu redor; cabe lembrar, também, que a luta política é espaço propício para o surgimento de comportamentos que, vistos de uma perspectiva socialista, são mais que condenáveis; além disso, os desvios éticos não surgiram agora, já se fazendo presentes noutros momentos da vida do partido; só que hoje o fenômeno atingiu tal intensidade que se constitui numa ameaça à coesão partidária. Entretanto, para conseguir mais ética, é preciso combater a política que facilita a falta de ética: o eleitoralismo, o institucionalismo.

Reafirmar a estratégia

Mais que uma fonte de desvios em relação aos princípios e a ética partidária, o institucionalismo é um jeito de fazer política, de acumular forças, de se relacionar com a população e os movimentos sociais, de conceber a política de alianças. Trata-se de uma estratégia política muito diferente daquela que o partido defende em seus documentos e resoluções, uma estratégia que se alimenta do desencanto frente às alternativas revolucionárias e que se sustenta numa brutal confusão entre governo e poder.
O PT sempre reservou um lugar importante, na sua estratégia, para a luta institucional e eleitoral. E não apenas temos conseguido ampliar nossa força nos legislativos e nos executivos, como também foi por aí que quase provocamos aquela que teria sido a maior derrota das classes dominantes, em toda a história do Brasil: a eleição de Lula presidente da República.
Contudo, a disputa do poder político envolve muito mais do que a conquista de governos e mandatos. E a luta institucional só contribui para a conquista do socialismo quando combinada com a mobilização social e com a disputa ideológica. Quem esquece isto, quem deixa de ver a luta institucional como uma das dimensões da luta de classes, termina considerando o caminho para o poder como um acúmulo de vitórias eleitorais.
A estratégia estabelecida pelo PT, desde l987, supõe —explícita ou implicitamente— algumas condições para o sucesso de um governo democrático e popular: o apoio do movimento social organizado, das instituições progressistas e de um arco de alianças políticas e sociais; a adoção de medidas de impacto que, embaladas no apoio inicial que todo governo tende a desfrutar, possam consolidar posições junto ao grosso da população; a capacidade de gerenciar o governo, evitando ao máximo quaisquer pretextos para uma ação desestabilizadora; uma política de relações internacionais que, granjeando apoio na Europa e América, iniba ações golpistas, boicotes e quetais; e a recusa em dissociar os sucessos eleitorais e institucionais de uma perspectiva revolucionária de transformação social.
De l987, quando se desenhou mais claramente essa política, até hoje, muita coisa mudou. De saída, perdemos o elemento surpresa: as elites sabem de nosso potencial para vencer as eleições. Por isso mesmo, consideram a adoção do parlamentarismo, ao mesmo tempo em que buscam construir alternativas para enfrentar a próxima disputa presidencial, sendo improvável que se repita o ocorrido em l989, quando as elites, para evitar o mal maior, tiveram que optar por um aventureiro.
De l987 até hoje, a crise brasileira aguçou-se, aumentando a urgência das reformas políticas, econômicas e sociais necessárias à sua superação e, com isso, sugerindo um início de governo mais radicalizado do que supunhamos em l987 e esperávamos em l989.
A situação internacional modificou-se substancialmente: o chamado campo socialista não existe mais, a Europa inclinou-se consideravelmente à direita, evoluiu negativamente a situação na América Latina. Como resultado, os fatores de inibição à política agressiva e conservadora dos EUA são bastante diminutos.
Mais grave que tudo isto, os movimentos sociais encontram-se numa situação difícil, não apenas por efeito da recessão, mas também por conta da crise política que se abateu sobre vários deles, somados ainda às disputas internas ao PT e às desilusões produzidas por parte dos governos municipais petistas.
Por último, a crise político-ideológica que se abateu sobre a esquerda colocou em questão, para muita gente, elementos essenciais da estratégia e do pensamento socialista, como a noção de que não pode haver socialismo sem revolução.
O quadro apresenta-se, portanto, muito mais complexo e difícil do que nos anos anteriores. Como enfrentá-lo? Quais as alterações necessárias em nossa estratégia?

Um horizonte difícil

Quando as coisas estão difíceis, não cabe aos socialistas esperar dias melhores; cabe sim lutar por dias melhores. Mas é importante ter em mente quais as perspectivas desta luta, quais as forças com que se conta, quais os obstáculos a superar.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que dias piores virão. Apesar da onda neoliberal ter esgotado seus atrativos, isso não nos faz prever o início de um período mais positivo para as forças de esquerda. Ao contrário, o recuo das forças socialistas, a ofensiva político-ideológica do capitalismo e o crescimento do conservadorismo racista e militarista de extrema direita são fenômenos que devem durar ainda bastante tempo.
Mesmo sem desconsiderar a possibilidade de vitórias pontuais ou de resultados positivos para a esquerda, devemos estar preparados para uma luta de longo curso e bastante difícil.
Esta maneira de considerar a situação não nos leva a minimizar as potencialidades da luta pelo socialismo no Brasil: somos um dos poucos países do mundo onde existe um movimento político-social de massas, sindical e popular, fortemente influenciado por uma esquerda radical, independente e socialista, que conseguiu acumular significativas vitórias ao longo dos últimos doze anos.
Mesmo aqui, entretanto, temos que considerar o forte impacto —político e principalmente ideológico— da dèbácle do chamado campo socialista e, de uma maneira geral, da alteração na correlação de forças em nível mundial. Some-se a isto o efeito devastador de uma prolongada recessão, cujos efeitos são reforçados pelas conhecidas mudanças no processo de trabalho, que atingem em cheio a classe trabalhadora, especialmente seu setor industrial. E, finalmente, é preciso levar em conta o fenômeno, já comentado, da cooptação pela institucionalidade.
Entretanto, não é só o campo popular que enfrenta graves problemas. No Brasil, a burguesia tem motivos de sobra para estar preocupada: a abertura planejada pelos militares foi atropelada pelas diretas-já; a transição negociada sob Tancredo resultou na instável Nova República de Sarney; a Constituinte de centro-direita resultou numa constituição, sob vários aspectos, mais progressista do que eles desejavam; as eleições diretas quase resultaram na vitória de um socialista; e o paladino do neoliberalismo revelou-se príncipe da corrupção.
A instabilidade política, principal marca dos últimos quinze anos, possui uma causa básica: nem as elites conseguiram impor completamente seu projeto aos trabalhadores, nem a oposição democrática e popular conseguiu reunir forças para impor um caminho alternativo ao das classes dominantes. Como resultado, a situação econômica e social do país vem deteriorando-se progressivamente, sem que se consiga dar início a um novo ciclo de desenvolvimento, mesmo do ponto de vista do capitalismo.
É improvável que esta situação se estenda por muito mais tempo —e, se o fizer, será às custas da estagnação, do agravamento das condições de vida da população, e de tornar crônica a crise política.
São basicamente três os desenlaces alternativos para esta situação: ou bem a burguesia impõe uma derrota profunda à organização sindical e popular, aos partidos de esquerda e aos setores reformistas da sociedade civil, o que nas condições atuais exigiria uma ruptura com a legalidade; ou bem a burguesia coopta um setor da oposição democrática e popular, estabelecendo o tão sonhado pacto social; ou as forças de esquerda conseguem virar o jogo. O objetivo do PT deve ser no sentido de viabilizar este último desenlace. É a partir desta perspectiva que enxergamos nossa intervenção na conjuntura atual.

A instabilidade pode ser democrática

A instabilidade no Brasil é social: a decadência, a marginalização, a piora nas condições de vida estabelecem uma tensão surda, um ruído de fundo, uma guerra civil de baixa intensidade. A instabilidade é econômica: há mais de uma década fala-se da crise do modelo econômico, sem que outro tenha sido erguido no lugar. A instabilidade também é, evidentemente, política; não custa lembrar que até ontem Fernando Collor era celebrado por ter introduzido “novos temas” na agenda nacional. Vê-se agora que “novos temas” eram aqueles.
Diante de um país tão instável, as elites —e não só elas— promovem uma espécie de culto à estabilidade. Assim tem sido celebrado, por exemplo, por importantes órgãos da imprensa brasileira e internacional, o afastamento de Collor e seu julgamento: como uma prova da maturidade da nação. Enfim uma crise de porte é enfrentada por meios constitucionais.
A moral da história é bem diferente da exposta acima. Mais uma vez ficou evidente a profunda instabilidade do país. Mais uma vez ficou patente a incompetência das elites em gerar um projeto nacional que possibilite superar a crise e deflagrar um novo período de crescimento do país.
Essa situação nos faz lembrar que, no Brasil, as grandes mudanças sociais e políticas sempre foram produto combinado de acordos por cima e golpes de força articulados pela classe dominante. A tentativa presente —de transitar para um novo período histórico, com acordos por cima, mas sem o recurso a golpes ou medidas do gênero— é em boa medida inédita e, do ponto de vista das elites, sem sucesso.
Isto decorre de duas razões principais: a primeira é que não se construiu um consenso, ou algum tipo de hegemonia, entre as classes dominantes, sobre o projeto nacional que substituirá o modelo parido pela ditadura e atualmente moribundo.(4)
Isto, por sua vez, impossibilita aos militares apresentarem-se como “promotores da nova ordem” (leve-se em conta, também, os desgastes da recente experiência ditatorial; o novo contexto internacional; a proposta de criar uma força armada internacional, reservando-se aos militares tarefas policiais; e a desestruturação do aparelho produtivo estatal, que juntos provocam bastante confusão entre os militares).
A outra razão é também simples: a oposição democrática, popular e socialista vem conseguindo, até agora, obstaculizar as tentativas que a burguesia tem feito para aplicar o(s) seu(s) projeto(s).
Nisso reside o paradoxo da situação: não temos força suficiente para impor o nosso projeto (que não está tão claro qual seja), mas eles também não conseguem aplicar completamente o deles (que tampouco está claro). Em parte porque não existe o projeto da burguesia; em parte porque somos fortes demais para sermos derrotados apenas por meios institucionais —e, na ausência de maiores riscos à dominação burguesa, não parece ser possível, nem parece valer a pena adotar, de momento, outros meios.
Incapazes de nos derrotar, as classes dominantes fazem seguidas tentativas de cooptar a esquerda, que até o momento vinham se chocando contra a nossa teimosa insistência em dizer não. Nisso pesavam tanto os vínculos sociais do partido, que o punham em guarda contra os acenos das elites, quanto a orientação estratégica do PT, que pelo menos até agora vinha se mantendo distante do tradicional adesismo comunista. É exatamente por isto que nos preocupa a atitude do PT diante da crise do governo Collor.
As classes dominantes fizeram de tudo para evitar que a crise atingisse também o projeto neoliberal e as elites que o sustentaram. Para isso, elas desenvolveram toda uma operação ideológica, que visava estabelecer um cordão sanitário que protegesse —a elas e a seu projeto— da podridão collorida.
Diante disso, era de se esperar que o PT mirasse não apenas Collor, mas também o projeto neoliberal e as elites. Não foi esse o tom, entretanto, da intervenção do partido no movimento Fora Collor. A partir de uma posição correta —a necessidade de estabelecer alianças que garantissem o impeachment—, nos colocamos muitas vezes na posição de fiadores do processo e, em nome disso, agimos com cautela desnecessária na hora de defender nossas próprias posições.
Para afastar Collor, preservando a “agenda modernizante”, as classes dominantes desenvolveram também uma operação política, para comprometer a oposição democrática e popular com o esquema de poder que seguiu-se ao day after.
Nesse particular, o sucesso da operação foi praticamente completo. Incorporaram-se ao governo Itamar não apenas quase todos os partidos de esquerda, mas até o PT foi comprometido —pois participou das discussões sobre a composição do governo e da indicação (envergonhada) de Walter Barelli—, situação que poderia ter se agravado se o Diretório Nacional, numa histórica votação, não tivesse deixado claro que nosso lugar é na oposição.
Nesse episódio todo, o comportamento da executiva nacional do PT revelou uma tendência muito forte à conciliação. O que teve início ainda antes do movimento Fora Collor, quando o partido adotou uma tática recuada. O que teve prosseguimento durante o movimento Fora Collor, com a aproximação do PT e dos setores da oposição conservadora, com o risco de confundir perfis —coisa que não ocorreu, em boa medida, graças ao “sectarismo” de nossa base. O que fica também evidente na discussão sobre o governo Itamar, quando alguns querem participar do governo, e outros consideram como nossa tarefa contribuir para a governabilidade de Itamar.
Essa tendência conciliatória presente na executiva nacional do PT vincula-se a uma concepção incorreta que vem crescendo no partido, acerca do papel do PT e das eleições de l994. Trata-se de uma somatória de posições, de atitudes e de concepções que abrem caminho para uma estratégia alternativa, profundamente diferente daquela que o PT vem defendendo ao longo dos últimos anos.

O institucionalismo

A hipótese estratégica central do PT é conhecida: nosso caminho para o poder passa por ser governo. Trata-se, sem dúvida, de uma política bastante arriscada —como de resto a experiência chilena já demonstrou.
Afinal, mesmo desalojadas do governo federal, as elites manterão suas relações internacionais, seu poder econômico, sua influência sobre os meios de comunicação e as forças armadas, sua presença no legislativo, no judiciário e noutros níveis do executivo e da burocracia governamental —e, a partir de lá, tudo farão para cooptar, submeter, desestabilizar ou, no limite, inviabilizar a execução do programa democrático e popular.
Por isso, criar as condições para uma vitória eleitoral —por exemplo, em 1994— é também criar as condições que tornarão possível aplicar o nosso programa, ou seja, governar. E é dos desdobramentos concretos da vitória e da ação governamental que pode, ou não, resultar um avanço no sentido do socialismo.
Ocorre que um programa democrático e popular atenta, necessariamente, contra interesses solidamente estabelecidos, porque está estruturado em torno de um objetivo central: incorporar ao Brasil, à vida econômica, social, política e cultural, a enorme maioria de nosso povo, que encontra-se marginalizada. Uma operação desta magnitude supõe impor uma derrota profunda às elites.
Considerado de um ponto de vista estritamente eleitoral e institucional, trata-se de um problema de difícil solução: afinal, a maioria das forças políticas que podem se aliar a nós rejeita a radicalidade das reformas que propomos; assim, ou bem não conseguiríamos vencer, por falta de alianças; ou bem não conseguiríamos governar, por falta de aliados.
A solução que setores do partido têm apresentado para este problema é muito simples: trata-se de rebaixar nosso programa, viabilizando assim a criação de um arco mais amplo de alianças, o que possibilitaria tanto a vitória eleitoral quanto o governo. É claro que isto dilataria no tempo a execução das reformas necessárias ao país. Mas seria um caminho mais seguro do que o aventureirismo de querer vencer e governar sozinhos.
O bom senso deste argumento é apenas aparente e esconde um paradoxo: supondo que fosse factível compor, em torno do PT, o arco de alianças com que sonham tantos setores do partido, teríamos como resultado não um governo democrático e popular, disposto a realizar reformas estruturais na perspectiva do socialismo; mas sim um governo cujo limite máximo seria enfrentar a crise brasileira, nos marcos do capitalismo.(5) Noutras palavras: a aliança não se daria em torno de nós ou de nosso programa, mas em torno de outro programa e forças políticas.(6)
Pode até ser que um governo federal petista não consiga aplicar o programa democrático e popular e que, efetivamente, termine mantendo-se nos estritos limites do capitalismo. A questão, contudo, não é saber se conseguiremos ir até o final na aplicação do programa, ou se ficaremos pela metade; o que está em questão é saber se nós vamos tentar criar as condições para aplicar até o final nosso programa. O risco que se esconde por trás dessa busca desesperada pela ampliação do leque de alianças é, já de saída, desistirmos de boa parte de nossos objetivos.
A história é bastante cruel com quem age desta maneira. Conseguiríamos no máximo a desconfiança e o desânimo de nossas bases sociais e eleitorais, sem conquistar outros setores. E, diga-se de passagem, sem reduzir a animosidade das elites contra nós(7) —como demonstrou a recente campanha eleitoral, especialmente na cidade de São Paulo.
O mais grave, contudo, é a hipótese que está subjacente àquela proposta: a de que o Brasil poderia experimentar, sem rupturas maiores, uma sequência de governos reformistas, democráticos e progressistas. Somente este horizonte torna razoável defender que o PT suavize agora suas reinvidicações e adote uma estratégia gradualista.

Quanto pior, pior

As forças de esquerda precisam pensar mais sobre as consequências políticas da acelerada degradação das condições de vida da maioria de nosso povo. Há mais de uma década que as liberdades políticas vêm se ampliando, há mais de uma década que os movimentos sociais pelejam por reformas parciais, e há mais de uma década aumenta o número de pessoas que estão abaixo da linha da miséria.
A miséria, quando se apresenta desorganizada, é facilmente manipulável pelas forças de direita, que a utiliza não apenas como instrumento de pressão contra os assalariados e os setores médios, mas também como reserva eleitoral e, inclusive, pretexto para defender governos fortes e soluções policiais para as questões sociais, o que encontra apoio inclusive entre os próprios miseráveis —que aliás parecem ter ganho muito pouco com a democracia.
Sabemos que, por mais revolucionário que seja um governo federal petista, o processo de elevação das condições de vida da maioria do povo será necessariamente lento. Por isso mesmo, trata-se de correr contra o tempo, porque as demandas são enormes e certamente serão amplificadas diante de um governo de esquerda, que desperta expectativas de mudança rápida.
Se não soubermos administrar estes elementos —a expectativa, a esperança, que aliás são os principais motivos que levam as pessoas a votar num partido socialista—, se o principal componente de nossa estratégia for a moderação, corremos o risco de ser abandonados exatamente pelos que confiaram em nós.(8)
A alternativa —temida por alguns, sonhada por outros— de um governo moderado, que decepcionaria os setores mais radicais de nosso eleitorado, mas que conseguiria levar a cabo reformas de base no país, não nos parece sustentável nem convincente. Cabe perguntar: o povo sustentaria um governo que não o defende? A direita permitiria um governo de esquerda sem apoio popular?
O Chile mostrou que a estratégia gradualista, moderada, do passo-a-passo, pode terminar em tragédias maiores do que o aventureirismo vanguardista.

Sem ilusões

A política apresentada por setores do partido —rebaixar o programa, ampliar o leque de alianças, moderar a oposição, reduzir o horizonte de nosso governo— nos parece a pior tática possível.
Em primeiro lugar, porque a tradição das elites brasileiras nunca foi a de negociar ou tolerar as ações independentes dos “de baixo”. Aqui, ao contrário da Europa, em que a burguesia em parte aceitou, em parte viu-se forçada a deixar que forças de esquerda administrassem por ela a crise do capitalismo, as elites brasileiras não têm largueza de visão nem prática democrática.
Ademais, as elites possuem suas próprias alternativas para enfrentar as eleições de l994, podendo dispensar uma eventual aproximação com o PT. Mesmo forças que hipoteticamente estariam mais próximas de nós —o PDT, o PSDB—, além de possuírem alternativas próprias, demonstraram um tal nível de vacilação diante do governo Collor que nada garante que, em l994, aceitem marchar conosco. O PSDB, aliás, mostrou que possui setores suscetíveis inclusive ao malufismo, ao mesmo tempo em que sua principal estrela —o senador Mário Covas— recusou-se a gravar seu apoio a Suplicy.(9)
O caminho para o PT crescer —e inclusive conquistar a base social de outros partidos— é semelhante ao que seguimos durante a Nova República: a oposição radical, sem subterfúgios, sem meios-termos, sem ambiguidades, evitando ao máximo confundir, perante o povo, nosso perfil com o dos demais partidos.
Mostrar nossas diferenças em relação a “tudo que está aí” é essencial, inclusive para ganhar o apoio das maiorias desorganizadas, marginalizadas, “descamisadas” da sociedade.(10) Sem ganhar estes setores, será muito difícil sustentar um programa consequente de reformas. Mas para fazê-lo teremos que mudar nosso discurso e nosso jeito de fazer política; executar uma ação governamental que incorpore à atividade econômica os milhões de deserdados sociais —condição imprescindível para lhes assegurar uma cidadania política que não seja meramente formal; e aprender a trabalhar com o imaginário, o simbólico, e nos dotarmos dos mecanismos de comunicação que viabilizam fazê-lo massivamente.
Naturalmente, é improvável que consigamos, no curto espaço de dois anos, dar conta das tarefas acima relacionadas. Entretanto, uma das maravilhas da luta política é que se pode conseguir em um dia o que poderia demorar anos. Por isso é que só conseguimos conceber a vitória de Lula, em l994, num contexto de radicalização de paixões, de disputa política aguda, em que nós despontemos como a única força disposta de fato a realizar reformas profundas na sociedade brasileira.
Raciocínio semelhante aplica-se ao governo. Uma coalizão de esquerda só se sustentará caso leve até o fim seu programa. É ilusão achar que, transigindo em nossos objetivos, será possível evitar retaliações de uma direita consideravelmente mais forte. Ao contrário, só uma política radical —leia-se, a que vai até o máximo que nossas forças permitem— criará as bases populares e institucionais para um governo democrático e popular.
Em resumo: uma política baseada num acordo de cavalheiros, na ampliação do nosso leque de alianças à custa de um programa de reformas mais tímido, bem como à custa da redução do nível de ação e de radicalidade da esquerda, só serviria para reduzir o nosso poder de fogo, debilitando o cacife que poderia forçar outros setores a negociar conosco.
O caminho da conciliação desmoraliza o PT, desfigura a esquerda. Nos faz perder apoios orgânicos e eleitorado. Nos enfraquece. Enfim, é o caminho para uma derrota em 1994.

Eleição sem organização?

Partimos da hipótese de que o caminho para uma vitória eleitoral consequente em l994 deve combinar dois movimentos, em certa medida contraditórios. De uma lado, uma oposição radical ao governo de plantão, às elites, à sua política econômica, a seus partidos, que nos apresente como o que de fato somos: uma alternativa a “tudo que está aí”.
Ao mesmo tempo em que firmamos um perfil político-ideológico diferenciado no plano nacional, devemos consolidar apoios sociais, partidários, institucionais, de massa, à política concreta de reformas sociais, econômicas e políticas que estamos defendendo. O que só se fará, aliás, se tivermos estabelecido aquelas diferenças.
Este duplo movimento é necessário para evitar ao máximo que nossa eventual vitória nos encontre sem uma retaguarda social mobilizada e organizada. E isto é fundamental, porque não acreditamos que um governo democrático e popular seja outra coisa senão um governo de crise, de enfrentamentos.
A principal qualidade de um governo democrático e popular deve ser a capacidade de articular apoios políticos, especialmente de massa. Isso exige mais que capacidade de gerenciar o cotidiano; exige mais que competência técnico-administrativa e honestidade.
Se queremos aplicar um programa democrático e popular na perspectiva do socialismo, carece ainda retomar nosso discurso socialista, nosso combate ideológico ao neoliberalismo, nossa crítica aos fundamentos da modernidade que o discurso hegemônico apresenta como disfarce.(11)
É evidente que uma política deste tipo supõe um lugar destacado para a ação orgânica do partido: preservar e ampliar nossa estrutura militante, garantir o bom funcionamento de nossas instâncias democráticas, integrar a política das bancadas e das prefeituras à política do conjunto do partido, garantir uma efetiva coordenação entre a ação partidária e a ação dos movimentos sociais a nós ligados etc. E tudo isto, por sua vez, pressupõe uma política e uma direção dispostas a isso.
Ao mesmo tempo em que nos empenhamos pela vitória de l994, é preciso também levar em conta os possíveis cenários alternativos. Por exemplo, uma derrota —seja no primeiro, seja no segundo turno—, pode provocar uma crise profunda na militância, que tem sido levada a imaginar a próxima eleição presidencial como a hora da onça beber água.
Outro cenário possível é o da vitória da esquerda, mas sob regime parlamentarista e com um Congresso oposicionista. Um terceiro cenário, comum em países como o Brasil, é o da interrupção total ou parcial do processo democrático. Nunca é demais lembrar que crises como a que o país está vivendo agora sempre foram solucionadas manu militari.
A existência de cenários alternativos ao Feliz 94 deve servir como um alerta de que nosso caminho para o poder passa por vitórias eleitorais e por um governo democrático e popular somente no caso de manterem-se as condições atuais da luta política. E mesmo nesse caso, o caminho para o poder passa pelas eleições, mas não se limita nem se reduz a elas.


Notas
l.Folha de S.Paulo, 19.12.1992
2.Linha Direta nº 112, de 20 a 26 de novembro de 1992
3.Folha de S.Paulo, 6.12.92
4.Aliás, tenho grandes dúvidas sobre se a burguesia brasileira é capaz de gerar um projeto nacional semelhante aquele que orientou a ação dos militares durante a ditadura. Nesse sentido, a própria burguesia passa por um teste: ela conseguirá, sem ditaduras, sem golpes, sem intervenção militar, formular um projeto hegemônico e ganhar apoio social e político para implantá-lo? Como já disse, tenho dúvidas sobre isso. Até porque uma das condições para a formulação de um projeto desta natureza seria a existência de uma alternativa democrática e popular consistente, o que também não existe de maneira muito clara. Com isso, na ausência —de um lado e de outro— de projetos nacionais mais definidos e antagônicos, o país vai descambando.
5.Como disse o prefeito de Goiânia, Darci Accorsi, “se o Lula asumir a presidência da República, em 1994, o que ele vai fazer é gerir a crise do capitalismo”. (Brasil Agora nº 29, de 7 a 20 de dezembro de l992).
6.É por isso que julgamos extremamente oportuna a crítica que César Benjamin dirigiu às Diretrizes para um programa emergencial de política econômica: “É uma tragédia; estamos perdendo nossa capacidade crítica e deixando de ser um partido de reforma social, justamente no momento histórico em que essa bandeira é mais importante para o Brasil(..)Reformismo, no PT, está virando doença infantil.” (Brasil Agora nº 30, de 21 de dezembro a 29 de janeiro de 1993).
7.Afinal, não estamos na França ou na Espanha, onde uma elite mais arejada —é verdade que às custas de duas guerras mundiais, de uma guerra civil, das pressões combinadas do movimento socialista nacional e internacional— aceitou que partidos socialistas executassem o programa neoliberal. Nossa burguesia não é suficientemente esclarecida.
8.Foi em certa medida o que ocorreu em São Paulo. Em l988 conquistamos os votos “descamisados”, que foram atraídos por Collor em l989 e por Maluf em 1992. Paradoxalmente, a administração democrática e popular realmente priorizou os investimentos sociais e a periferia. O que reforça a idéia, em nosso entender, de que não basta “inverter as prioridades” administrativas sem, simultaneamente, travar a batalha política —perdida pela administração e pelo conjunto do PT em episódios como o IPTU ou a greve dos condutores. Registre-se que André Singer, numa análise publicada pela Folha de S. Paulo em 13.12.92, argumenta num sentido exatamente oposto.
9.Apesar disso, há setores do Partido embevecidos com a possibilidade de compor uma aliança com o PSDB ainda no primeiro turno de l994, fingindo não ver que sua atitude na eleição paulistana sinaliza qual a perspectiva do PSDB: tentar ocupar o centro, que as dificuldades do quercismo ameaçam deixar vago. E para isto, nada mais improvável do que uma aliança entre o PSDB e o PT —salvo se o PT quiser ocupar lugar secundário nesta aliança.
10.Numa palestra feita no Instituto Cajamar, Eric Hobsbawn bateu exatamente nesta tecla: para ele, vivemos um período histórico onde as forças anti-establishment de direita têm conseguido capitalizar a insatisfação popular contra a política e os políticos. A vantagem relativa do PT é exatamente não ser visto como parte integrante do establishment. Cauteloso, Eric Hobsbawn acrescentou a esta última frase um “hasta la fecha”...
11.Isso supõe, como diz Emir Sader, em artigo publicado no Brasil Agora nº 25, de 12 a 25 de outubro de 1992, enfrentar “o risco da cooptação da esquerda por parte das elites tecnocráticas derrotadas na versão Collor, mas revividas política, ideológica e tecnocra­ticamente em parte não desprezível da oposição”; enfrentar “a força ideológica acumulada pelo neoliberalismo, inclusive na esquerda e no próprio PT”, expressa por exemplo numa “estranha comunidade de parlamentares economistas, que convivem no Congresso de forma promíscua ideológicamente, como se os imperativos técnicos da economia se impusessem sobre as prioridades políticas e sociais. Basta recordar como o plano Collor chegou a ser saudado por economistas do PDT, do PMDB e do próprio PT”.


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Hobsbawn, sensei

Texto escrito em 1998 e publicado na revista História Social.    

Sobre história, o livro mais recente de Eric Hobsbawn, reúne um prefácio e 22 ensaios, escritos entre 1968 e 1997, dos quais apenas seis até agora nunca tinham sido publicados. A maioria deles (16) foi apresentada originalmente em conferências, colóquios e aulas magnas.
     Diferentemente de outras coletâneas de Hobsbawn, disponíveis em português, esta é “sobre história”, ou seja, reúne ensaios que têm em comum abordarem diferentes aspectos do debate acerca da natureza da história (nos dois sentidos da palavra).
     Toda a obra de Hobsbawn é atravessada, explicitamente, por essa preocupação metodológica. Professor desde 1947, organizou seu primeiro livro em 1948 e defendeu sua tese de doutoramento em 1950. Desde então, produz copiosamente. Só no Brasil, teve publicadas as seguintes obras: Ecos da Marselhesa, Capitão Swing, A era das revoluções, A era do capital, A era dos impérios, Era dos extremos: o breve século XX, A invenção das tradições, Da revolução industrial inglesa ao imperialismo, Rebeldes primitivos, Os bandidos, Mundos do trabalho, Os trabalhadores, Revolucionários, Estratégias para uma esquerda racional, além de um livro sobre jazz e da coleção História do Marxismo, da qual foi organizador.
     Esta produção, concentrada em dois grandes temas (classes trabalhadoras e história mundial), fez de Hobsbawn um dos mais conhecidos e importantes historiadores da atualidade. O irônico e surpreendente, nesses tempos de renegados e convertidos, é que Hobsbawn nunca escondeu sua dupla condição de marxista e comunista. Situação equivalente, talvez só a de José Saramago.
     O marxismo de Hobsbawn não tem nada de pós-moderno: “o que a história pode fazer é descobrir os padrões e mecanismos da mudança histórica em geral, e mais particularmente das transformações das sociedades humanas durante os últimos séculos de mudanças radicalmente aceleradas e abrangentes. Ora, um projeto dessa ordem exige uma estrutura analítica para a análise da história. Essa estrutura deve estar baseada no único elemento observável e objetivo de mudança direcional nos assuntos humanos, isto é, a capacidade persistente e crescente da espécie humana de controlar as forças da natureza por meio do trabalho manual e mental, da tecnologia e da organização da produção. Aqui reside a importância crucial de Karl Marx para os historiadores, porque ele construiu sua concepção e análise da história sobre essa base. E isso significa, basicamente, uma concepção materialista da história”.
     Há, mesmo entre os marxistas, quem considere Hobsbawn um “ortodoxo”. Claro que sua ortodoxia nada tem a ver com os manuais, mas para os padrões elásticos atualmente em voga, ele chega a ser chocante. Como ninguém coloca em dúvida a qualidade de sua obra, há duas alternativas: ou estamos diante de um caso de esquizofrenia teórica, ou é exatamente o alicerce “ortodoxo” quem sustenta seu trabalho de historiador.
     Além deste tipo de debate teórico, Sobre história contém importantes reflexões sobre a finalidade e as consequências do trabalho do historiador. Em alguns momentos, é como se Hobsbawn estivesse preocupado em oferecer orientações de “ética profissional”.
     Por exemplo: no primeiro ensaio, originalmente uma palestra para estudantes, ele diz que “os governos, o sistema econômico, as escolas, tudo na sociedade, não se destina ao benefício das minorias privilegiadas. Nós podemos cuidar de nós mesmos. É para o benefício da grande maioria das pessoas, que não são particularmente inteligentes ou interessantes, não têm um grau elevado de instrução, não são prósperas ou realmente fadadas ao sucesso, não são nada de muito especial. É para as pessoas que, ao longo da história, fora de seu bairro, apenas têm entrado para a história como indivíduos nos registros de nascimento, casamento e morte. Toda sociedade na qual valha a pena viver é uma sociedade que se destina a elas, e não aos ricos, inteligentes e excepcionais, embora toda sociedade em que valha a pena viver deva garantir espaço e propósito para tais minorias. Mas o mundo não é feito para o nosso benefício pessoal, e tampouco estamos no mundo para nosso benefício pessoal. Um mundo que afirme ser esse seu propósito não é bom e não deve ser duradouro”.
     O fato é que Hobsbawn possui um sentido muito prático do efeito da história (nos dois sentidos da palavra) sobre as pessoas, inclusive sobre si mesmo, como sabem os que leram a “Introdução” de A era dos impérios, onde ele afirma ser “extremamente improvável que um encontro assim [entre sua mãe austríaca e seu pai inglês, no Esporte Clube dos arredores de Alexandria] tivesse acontecido num lugar assim, ou que tivesse levado ao casamento entre duas pessoas assim em qualquer outro período [anterior] da história”.
     Ou ainda: “todo historiador tem seu próprio tempo de vida, um poleiro particular a partir do qual sondar o mundo. Meu próprio poleiro é constituído, entre outros materiais, de uma infância na Viena dos anos 20, os anos da ascensão de Hitler em Berlim, que determinaram minhas posições políticas e meu interesse pela história, e a Inglaterra, e especificamente a Cambridge dos anos 30, que confirmaram ambos”.
     Essa percepção aguda e pessoal dá a algumas de suas reflexões um sentido quase melancólico: “Grande parte de minha vida, talvez a maior parte de minha vida consciente, foi dedicada a uma esperança que foi claramente desapontada, e para uma causa que evidentemente fracassou: o comunismo iniciado pela Revolução de Outubro”. Mas, apoiando-se no professor Reinhard Koselleck (para quem “no curto prazo a história pode ser feita pelos vencedores. No longo prazo, os ganhos em compreensão histórica têm advindo dos derrotados”), Hobsbawn conclui que “o fim deste milênio deve inspirar muita história boa e inovadora. Isto porque, à medida que o século termina, o mundo está mais cheio de pensadores derrotados preocupados com uma variedade muito ampla de insígnias ideológicas que de pensadores triunfantes --principalmente entre aqueles com idade suficiente para terem longas memórias”.
     Além do debate teórico e da discussão sobre o mister do historiador, Sobre história contém também uma análise sobre os desafios atuais do movimento socialista: “durante a maior parte da história, o mecanismo básico para o crescimento econômico foi a apropriação do excedente social. O crescimento operava por meio da desigualdade. Isso foi compensado, até certo ponto, pelo enorme crescimento na riqueza total. [Os produtores partilhavam dos benefícios] mediante a participação no processo produtivo. Suponhamos agora que a maioria da população não seja mais necessária para a produção. É provável que aumente e intensifique a desigualdade econômica e outras, como a desigualdade entre a maioria supérflua e os demais”.
     “Após cerca de 150 anos de declínio secular, a barbárie esteve em crescimento durante a maior parte do século XX e não há nenhum indício de que esse crescimento esteja no fim”.
     “O Manifesto Comunista ainda tem muito a dizer ao mundo às vésperas do século XXI. O mundo transformado pelo capitalismo que ele descrevia em 1848 é reconhecidamente o mundo no qual vivemos 150 anos depois. O Manifesto é um documento que levava em conta o fracasso. Esperava que o resultado do desenvolvimento capitalista fosse uma reconstituição revolucionária da sociedade em geral mas, como já vimos, não excluía a alternativa: ruína comum. Muitos anos depois, outro marxiano reformulou a frase como a escolha entre socialismo e barbárie. Qual deles prevalecerá é uma pergunta que devemos deixar para o século XXI responder”.
     Tomadas em conjunto, as reflexões sobre a história, sobre os historiadores, sobre os desafios presentes e futuros contidas em Sobre história compõem uma espécie de testamento.
     Hobsbawn é apenas o mais destacado dos historiadores marxistas britânicos, grupo que incluiu Maurice Dobb, E.P.Thompson, Cristopher Hill, Rodney Hilton, entre outros que serviram e servem de referência para diversas gerações de historiadores.
     Este grupo aprendeu a ver na história “o suor, o sangue, as lágrimas e os triunfos da gente comum, de nossa gente”. Cada qual do seu jeito, todos beberam na fonte do marxismo. Desenvolveram uma cooperação intensa, que prosseguiu mesmo depois que parte deles saiu do Partido Comunista. Eruditos, mostraram-se capazes de trabalho duro, muita pesquisa e uma enorme capacidade de interagir com outros setores da academia. Há quem os considere portadores de uma ou mais tradições teóricas (a esse respeito, seria importante que alguma editora traduzisse Os historiadores marxistas britânicos, de Harvey J. Kaye).
     Os marxistas britânicos, entre eles Hobsbawn, constituem hoje uma espécie de “padrão de qualidade” para as atuais e futuras gerações de historiadores. Que enfrentarão um desafio enorme: afinal, se é verdade que “os ganhos em compreensão téorica provém dos derrotados”, é verdade também que as derrotas sofridas pelo movimento socialista nos últimos anos foram intensas, e os danos intelectuais ainda maiores. Como sabe qualquer professor secundário, ou simplesmente alguém que leia sobre a qualidade de nossos livros didáticos, muito esforço terá que ser feito até mesmo para garantir um ensino regular minímo.
     Pelo menos no caso do Brasil, a maioria das pessoas, inclusive os estudantes universitários, leem menos e estudam menos ainda. As academias fornecem condições de trabalho excessivamente precárias. As organizações dos trabalhadores (partidos, sindicatos etc) dedicam poucos recursos para o trabalho intelectual. Aliás, parte da esquerda está mais preocupada em ocupar o seu lugar na ordem, do que em subvertê-la, inclusive intelectualmente. Amplos setores regrediram para uma crítica utópica ao capitalismo. Ainda não dispomos de uma análise global do capitalismo contemporâneo, necessária para embasar uma alternativa socialista. Que agora precisa incluir, também, um balanço das tentativas de construir o socialismo ocorridas no século XX.
     Nesse trabalho futuro, independente do que ainda nos ofereça, já valem para Hobsbawn as palavras que ele dedicou a Marx, no prefácio de Sobre história: “mesmo que eu achasse que grande parte da sua abordagem da história precisasse ser jogada no lixo, ainda assim continuaria a levar em consideração, profunda mas criticamente, aquilo que os japoneses chamam de um sensei, mestre intelectual para quem se deve algo que não pode ser retribuído”.
    

Intervenção feita na reunião do Diretório Nacional do PT

Como expliquei ao iniciar este blog, meu objetivo é tornar disponível textos produzidos ao longo dos últimos anos. Nesta categoria se inclui, também, a transcrição de uma intervenção que fiz na reunião do Diretório Nacional do PT  (São Paulo, dias 20 e 21/11/2004).  Minha fala ocorreu no sábado 20.

“Boa tarde companheiros e companheiras. Se a gente for observar a trajetória do PT desde 1982, essa trajetória é ascendente. Em todas as eleições municipais a gente comemorou um crescimento em relação às anteriores. Em 2004 não foi diferente disso. Obtivemos o primeiro lugar em votos no 1º. e no 2º. turno, crescimento no número de capitais, crescimento no número de vereadores, prefeitos e vices e também reitero o fato de não termos sofrido, no segundo turno, nenhuma derrota  acachapante.

Por isso, eu entendo quando alguns companheiros falam que nós obtivemos uma vitória eleitoral.

Mas acho que não dá para negar que a gente teve uma  derrota política, considerando de conjunto os resultados.

Por quê?

Porque não atingimos o principal objetivo nosso na eleição, que era dar prosseguimento àquilo que nós conseguimos em 2000 e 2002, ou seja,  deslocar a correlação de forças do país para a esquerda. Esse era o objetivo que o partido tinha se imposto e não foi isso que aconteceu.

Num certo sentido, houve uma inflexão à direita. Houve vitórias eleitorais e políticas fundamentais da oposição de direita nessa eleição. A oposição de direita saiu dessa eleição com discurso, com tática unificada, com centro político claro, controlando aparatos importantes de poder e considerando seriamente a possibilidade de conquistar a presidência da República em 2006.

Esse é o saldo político dessa eleição. Quais suas causas?

Em primeiro lugar, este resultado tem relação com o fato de que, ao contrário de 2002, a burguesia operou unificadamente nesse processo eleitoral. Não houve grande dissensão, nem grande neutralidade, houve uma grande unidade burguesa e por unidade burguesa eu me refiro à ação articulada do poder econômico, da mídia, do aparato de justiça, dos governos estaduais, de toda a estrutura de poder secular que eles têm. 

Desmentindo quem acha, à esquerda, que nosso governo é o “governo do capital”, porque se fosse eles não teriam feito o que fizeram; e desmentindo, à direita, aqueles que não perceberam (como disse o Silvinho no debate travado na CEN) que a mesma elite que aplaude a política econômica, é a elite que operou nossa derrota eleitoral.

Em segundo lugar, houve um arrefecimento no ânimo de nossa vanguarda, da classe trabalhadora, da militância, que não mostrou o mesmo entusiasmo de 2002 e de 2000. Em alguns casos, inclusive, entrou em conflito aberto conosco em várias categorias, em vários setores --mesmo que isso não tenha se traduzido no voto em candidaturas à esquerda-- nós perdemos intensidade, perdemos força, perdemos “punch”.

E por que ocorreram esses deslocamentos, essa movimentação, tanto na burguesia como entre os trabalhadores?

Eu acho que a razão é política, incluindo aí a política econômica.

Para mim não se trata só dos efeitos da política econômica, até porque no segundo semestre a gente viveu uma conjuntura relativamente  favorável e todo o partido se apoiou nisso, inclusive aqueles que --como eu-- criticamos a política econômica.

Para mim não se trata só dos efeitos do governo federal, porque em vários locais, vista de conjunto, a presença do governo federal foi positiva.

Quando eu falo que a razão é política, no sentido amplo da palavra, refiro-me aos efeitos políticos decorrentes, principalmente na nossa base social e política, da orientação geral seguida pelo governo.

Esta orientação geral nos fez perder, primeiro o discurso ofensivo contra a herança deixada pelo PSDB e pelo tucanos, porque não dava para manter esse discurso contra a “herança maldita” com o COPOM, à véspera do 2º. turno, aumentando a taxa de juros, para citar só esse exemplo.

Segundo, tirou de nós a condição de falar ofensivamente que somos o partido da mudança, haja visto por exemplo a atitude nossa em relação ao caso, já citado aqui, do comandante do exército, atitude que eu considero vergonhosa.

Isso nos levou a não ter capacidade ofensiva, facilitou a pasteurização do discurso, possibilitou ao nosso inimigo se apresentar com a mesma plataforma que nós e deixou o terreno livre para que eles fizessem a ofensiva ideológica contra nós, atacando o “gerenciamento”, “a falta de ética”.

Enquanto nas eleições de 2000 e 2002, a ofensiva era nossa, contra o neoliberalismo, contra a política econômica, contra o PSDB, dessa vez a ofensiva foi articulada por eles.

Nesse sentido é que eu acho que precisamos reorientar a política geral do governo, em particular e principalmente a política econômica, porque sem isso a gente não recupera ofensividade política.

Eu quero dizer, ainda, que saí feliz da reunião da CEN, para ficar triste dois ou três dias depois. Triste, primeiro pelo resultado da reunião do COPOM, depois pela saída de Carlos Lessa do governo.

A impressão que eu tenho companheiros, eu quero falar isso muito claramente, é que quando a gente reúne o partido, com as diferenças que a gente têm, há a compreensão de que precisa ter uma reorientação à esquerda.

Mas quando a gente vê a ação real do governo, a gente vê outra coisa, porque o sinal público que passou --por exemplo-- a demissão de Carlos Lessa, independente das razões que possa haver, é que o governo entendeu o resultado da eleição e ao invés de ir pra onde precisa ir, começou a ir para o outro lado. É essa reflexão que eu acho que o DN deveria fazer”.