domingo, 17 de março de 2024

Marcha da Família com Deus pela Liberdade: uma sexagenária cheia de vida?

Roteiro do programa Contramola de 18/3/2024

No dia 18 de março de 1964, o jornal Folha de S.Paulo publicou um anúncio muito especial.

Vou ler trechos do referido anúncio:

“O nosso direito de amar a Deus, e a liberdade e a dignidade de nossos maridos, filhos e irmãos, estão ameaçados pelos comunistas, primários em seus instintos e brutos em seus sentimentos”.

“Eles se acham em plena marcha para submeter o Brasil à escravidão da sua ditadura retrógrada, anti-humana, anti-cristã e fracassada na quase faminta Rússia e na faminta China”.

“Explorando condições difíceis que eles próprios ajudaram artificialmente a criar neste País da Esperança e do Futuro, os comunistas, altamente acumpliciados, preparam-se para o assalto final às Igrejas de todos os credos e a todas as liberdades de todos os cidadãos”.

“Vamos para as ruas, antes que os inimigos cheguem às nossas Igrejas!

“Compareça à “Grande Marcha da Família com Deus pela Liberdade” que será realizada dia 19, partindo Às 16 horas da Praça da República para a Praça da Sé”.

O anúncio era assinado por dezenas de entidades.

Abrindo a lista de signatários, estavam a União Cívica Feminina (UCF) e o Movimento de Arregimentação Feminina (MAF).

Outros dos signatários foram:

Fraterna Amizade Cristã Urbana e Rural
Círculos Operários Católicos
Associações Cristãs de Moços
Associação Comercial de São Paulo
Sociedade Rural Brasileira
Clube dos Diretores Lojistas
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
Centro das Indústrias do Estado de São Paulo

Como já dissemos, o anúncio foi publicado no dia 18 de março de 1964; no dia seguinte, no dia 19 de março, uma quinta-feira, aconteceu a primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

Digo a primeira, porque aconteceram muitas, entre os dias 19 de março e 8 de junho de 1964.

A Marcha de São Paulo foi a precursora.

A Marcha do Rio de Janeiro, no dia 2 de abril, foi a mais concorrida, pois comemorava a vitória do golpe, iniciado no dia 31 de março e consumado no dia 1 de abril.

Aliás, o dia apropriado: o da mentira!

A Marcha de 19 de março e as seguintes foram concebidas como uma resposta ao comício realizado na sexta-feira, dia 13 de março de 1964, em frente à Estação Central do Brasil, comício no qual discursaram João Goulart e Leonel Brizola, entre outros.

O discurso feito por Leonel Brizola está disponível, na íntegra, no seguinte endereço:

https://upassos.wordpress.com/2011/04/18/o-discurso-de-brizola-no-comcio-da-central-do-brasil-13-de-maro-de-1964/

O discurso feito por João Goulart está disponível, na íntegra, no seguinte endereço:

https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2014/03/discurso-de-jango-na-central-do-brasil-em-1964]

Vou citar uns trechos do discurso de Jango:

Estaríamos, sim, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que de norte a sul, de leste a oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria.

Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro.

O inolvidável Papa João XXIII é quem nos ensina que a dignidade da pessoa humana exige normalmente como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada a todos.

É dentro desta autêntica doutrina cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política social, particularmente a que diz respeito à nossa realidade agrária.

O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados.

Àqueles que reclamam do Presidente de República uma palavra tranquilizadora para a Nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social.

O discurso de Jango tem outros trechos muito importantes.

De conjunto, o discurso sinalizou que o governo ia acelerar o passo em direção às reformas de base.

No seu discurso, Jango sinalizou, também, a expectativa de que as Forças Armadas apoiariam a ação do governo.

Frente ao Comício de 13 de março, a reação da direita foi acelerar as providências para o golpe.

O golpe não foi uma reação ao comício, nem foi uma reação ao esquerdismo de Jango, como reza uma lenda que foi recentemente endossada pelo jornalista Azedo, num artigo publicado no Correio Braziliense, dia 13 de março de 2024, artigo que no fundo reforça a tese segundo a qual “a culpa é da vítima”.

O artigo de Azedo está aqui: Análise: um comício que marcou a história do Brasil (correiobraziliense.com.br)

O golpe de 1964, sempre é bom lembrar, foi uma continuação do golpe tentado e frustrado em 1954.

Por esses e por outros motivos, o golpe de 1964 não foi uma reação ao comício. Mas, isto sim, o golpe foi acelerado pelo comício.

Algo parecido ocorreu no Chile, em 1973.

Pinochet era comandante do Exército e fingia ser um defensor da Constituição.

Quando Allende contou a Pinochet que convocaria um plebiscito, para o povo decidir sobre a continuidade ou não do governo da Unidade Popular, Pinochet pisou no acelerador e antecipou o golpe de Estado.

Dito isto, voltemos à Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ou melhor, voltemos uns dias antes, ao Comício do 13 de março de 1964.

Os líderes da direita acompanharam atentamente o comício.

E estavam preocupados, principalmente aqueles que sabiam de fato confirmado por sondagens feitas na época, mas não publicadas, a saber, sabiam que o governo Jango tinha o apoio da maioria do povo.

Mais detalhes sobre a aprovação do governo Jango, ler aqui:

https://www.camara.leg.br/noticias/429807-jango-tinha-70-de-aprovacao-as-vesperas-do-golpe-de-64-aponta-pesquisa/

Por isso, para o golpe ter sucesso, não bastava ter apoio clerical, midiático, parlamentar, militar e empresarial; era preciso, também, passar a impressão de que os golpistas tinham o apoio da maioria da população.

É também por isso que líderes da direita encamparam uma iniciativa de setores católicos anticomunistas; mas ao mesmo tempo aqueles líderes decidiram dar caráter mais amplo à iniciativa, para que ela não ficasse restrita a uma denominação religiosa.

Aqueles setores católicos anticomunistas tinham ficado particularmente irritados com a seguinte passagem do discurso de Jango:

(...) Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo (...) O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados”.

Na época, se dizia que uma “Irmã” chamada Ana de Lurdes teria sugerido “convocar as mulheres às ruas”, para “castigar” Goulart “pela ofensa que fizera ao “Santo Rosário”!

Aqui vale destacar três coisas.

Primeiro: destacar que na época havia um forte movimento de mulheres católicas, conservadoras e anticomunistas.

Num texto publicado na época, pode-se ler o seguinte:

“Alguém te dirá um dia, porventura, que a revolução brasileira foi uma arrancada de ricos contra pobres, de patrões contra operários. Por este livro saberás o quanto isso é falso. A revolução autêntica não se deu a 31 de março, mas a 19 de março. Foi tua mãe quem a fez, pensando em ti, para que tu continuasses livre e em regime de livre iniciativa pudesses construir o futuro esplendoroso do grande Brasil de amanhã”.

Segundo: destacar que na época havia um movimento chamado “Cruzada do Rosário em Família”, movimento criado nos Estados Unidos, nos anos 1940, por um padre chamado Patrick Peyton, com o objetivo de combater o “materialismo ateu” e a “deformação dos costumes”, garantindo assim a “unidade da família” e salvando “sua formação moral e cristã”.

O lema da “Cruzada do Rosário” era “família que reza unida, permanece unida”.

Na época, se dizia que as manifestações lideradas pelo Padre Peyton teriam reunido 600 mil pessoas em Recife, em 1961; e cerca de um milhão de pessoas, na cidade do Rio de Janeiro, em 1962; e um milhão e meio de pessoas, em São Paulo capital, no mês de agosto de 1964, depois do golpe.

Dizem os especialistas que a Cruzada tinha o apoio da CIA e que não se limitava a realizar estas atividades multitudinárias: também fazia trabalho de base nos locais, nas paróquias.

Terceiro, destacar que os marchantes mobilizaram também o mito da Revolução Constitucionalista.

Esse foi um dos motivos pelos quais a Marcha com Deus começou na Praça da República.

Como diz um texto também da época:

“MMDC – Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo – é um poema da vida brasileira, escrito numa placa de mármore, na praça da República, onde caíram varados a bala, os primeiros quatro mártires da Revolução de 32. Eles jogaram e perderam, na batalha pela liberdade de ser, liberdade de existir. Dali partiu a marcha, reencetando a batalha perdida da outra vez. Na lembrança daqueles mortos, encontrará o paulista vigor e fé para nova batalha, após cada batalha perdida”.

A Marcha do dia 19 de março começou com uma exibição musical da banda da Força Pública, matriz da atual Polícia Militar.

A Marcha chegou na Praça da Sé, recebida pelo badalar de sinos das igrejas.

E, claro, ao som do hino de 32!

Na marcha foi distribuído um "Manifesto ao Povo do Brasil".

E os marchantes carregavam muitas faixas e repetiam palavras de ordem, por exemplo:

“Reformas sim, comunismo não”.

“Tá chegando a hora de Jango ir embora”.

“Reformas sociais sim, comunismo não”.

“Vermelho bom, só batom”.

“Democracia sim, comunismo não”.

“Verde e amarelo, sem foice nem martelo”.

“Queremos um governo cristão”.

“Defendamos a Constituição”.

Entre as faixas, havia uma que dizia também: “Instituto Braile de Santos”.

Na Praça da Sé, houve vários discursos, entre os quais os do senador Audo de Moura Andrade, aquele que presidiria a sessão do Congresso que, no dia 1 de abril, proclamaria vaga a presidência da República.

Também discursaram o deputado Herbert Levy, mais conhecido por conta da Gazeta Mercantil; o senador Padre Calazans, da UDN; a deputada estadual paulista Conceição da Costa Neves; Lino de Matos, do Partido Trabalhista Nacional; Plínio Salgado, do Partido da Representação Popular; Gama e Silva, reitor da USP; o deputado Antonio Silva da Cunha Bueno; e Miguel Reale!!

Sim, teve um Miguel Reale na lista de oradores da Marcha de 19 de março, mostrando que quem sai aos seus não degenera, exceto se...

Um dos mais ilustres participantes da Marcha foi o Marechal Dutra, ex-presidente, que declarou à Folha de S. Paulo o seguinte:

Não posso me furtar a fazer um apelo à lucidez e ao tradicional bom senso dos meus compatriotas, no sentido de que se unam aos democratas, enquanto é tempo, a fim de evitar o advento de condições que lancem o Brasil no desastre da irremediável secessão interna. O respeito à Constituição é a palavra de ordem dos patriotas. A fidelidade à lei é o compromisso sagrado dos democratas perante a nação. (...) Nada de bom se resolve no clima do desentendimento, e é impossível sobreviver democraticamente na subversão”.

Outra ilustre participante foi dona Leonor de Barros, esposa do governador Ademar de Barros.

A reação da esquerda a Marcha? Foram várias.

Destaco as que desmereceram a Marcha como um ato “religioso” e de “classe média”.

Mesma atitude adotada por alguns, frente à manifestação de golpistas realizada no dia 25 de fevereiro de 2024.

Teve um elemento religioso? Teve.

Teve presença da chamada classe média? Teve.

Mas apesar disso ou por isso mesmo, as Marchas – foram ao todo 69, realizadas entre 19 de março e 1 de junho, incluindo nesta conta muitas Marchas realizadas em cidades do interior do estado de São Paulo – atingiram o objetivo: criar a aparência de que o golpe tinha respaldo majoritário na população.

Aliás, cá entre nós, sugiro responder a seguinte questão: se os golpistas de 1964 tinham maioria nas Forças Armadas e tinha, também, maioria no Congresso e no STF da época, por quais motivos gastaram tempo fazendo movimentação de rua?

As respostas para a questão acima ajudam a entender, também, por quais motivos a esquerda de 2024 - sem maioria no Congresso, sem maioria nas Forças Armadas, com um STF neoliberal e que sabemos o que fez no verão passado - precisa necessariamente mobilizar as ruas.

A extrema-direita, tanto em 1964 quanto em 2024, não teve nem tem dúvidas a respeito da importância de ocupar as ruas.

Hoje, mobilizam muita gente que não tinha nascido em 1964, mas que usa com prazer um figurino parecido com a da Marcha sexagenária.

O figurino é vintage, mas não está deslocado. Pois os dilemas de fundo do Brasil seguem muito parecidos, sessenta anos depois.

Infelizmente, uma parte da esquerda resiste a tirar as devidas consequências deste fato.

Um último comentário.

Um dos temas da Marcha era a defesa do Congresso e da Constituição, contra a suposta ameaça de Jango e dos comunistas.

Menos de 15 dias depois, o Ato Institucional número 1, assinado pelo autoproclamado “Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica”, afirmou o seguinte:

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.

(...)

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.

O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

Moral da história: a época empurrava grande parte das forças políticas para uma ruptura. A esquerda defendia que esta ruptura exigiria uma nova Constituição, elaborada pelo povo. Já a direita primeiro afirmou defender a Constituição, depois deu um golpe e, em seguida, rasgou a Constituição, tudo isso sem e contra o povo.

Apesar disso, Luiz Carlos Azedo, no texto já citado, diz queem vez de apostar num “dispositivo militar”, era mais importante respeitar as decisões do Congresso e convencer a sociedade de que as reformas eram necessárias. E não as impor”.

Vamos por partes.

Na época do governo Goulart, a esquerda estava tendo êxito em convencer a sociedade de que as reformas eram necessárias. E a maioria do povo apoiava o governo, segundo o Ibope. Como é óbvio, o golpe ocorreu exatamente porque os golpistas temiam perder as eleições presidenciais de 1965, assim como Pinochet temia perder o plebiscito convocado por Allende.

O governo Goulart não desrespeitou as decisões do Congresso. Aliás, no discurso de 13 de março de 1964, Jango diz que para fazer mais, seria preciso mudar a Constituição. Logo, quem “impôs” algo foi o golpe, não o governo Goulart. Claro, os golpistas acusavam o governo Jango de atentar contra a Constituição. E os golpistas de 64 também diziam que eles é que defendiam a democracia. Mas deixemos para a direita a tarefa de repetir, sessenta anos depois, essa “história alternativa”.

O verdadeiro dilema que o governo Jango experimentava, como experimenta qualquer um que tenta fazer reformas num marco institucional hostil, é: como furar o cerco?

A decisão do governo Jango foi a de apelar para a mobilização popular. E para se convencer da necessidade de mobilização, Jango não precisa ser emprenhado pelo ouvido por Prestes, como afirma Azedo, em mais uma versão de “a culpa é do PT”, digo, “dos comunistas”. Cá entre nós, o trabalhismo daquela época tinha no seu meio gente que viveu tanto 1930, quanto a Cadeia da Legalidade.

Seja como for, só é possível fazer mobilização popular, se ela for acompanhada de medidas práticas, que mostrem ao povo de que lado o governo realmente está, não apenas na retórica, mas na ação.

O problema não residia, portanto, em “respeitar” ou não respeitar “as decisões do Congresso”; o problema residia em aceitar ou não a correlação de forças congressual como sendo o limite do que o governo podia, ou não podia, fazer.

Ao decidir ultrapassar este limite, o governo sabia que viriam reações ainda maiores. E foi este, na minha opinião, o erro fatal: não estar preparado para estas reações.

Portanto, diferente do que diz Azedo, o problema não foi a disposição de usar um dispositivo militar, para combater o golpismo. O problema foi confiar num “dispositivo” fake, de araque, que não existia de verdade. O erro foi confiar que havia, naquelas forças armadas, efetiva disposição de combater os golpistas e seus aliados estrangeiros.

No final de seu discurso, dia 13 de março de 1964, Jango disse: “só conquistaremos a paz social pela justiça social”.

Faltou, em nome da paz, se preparar para fazer a guerra contra os patrocinadores e beneficiários da injustiça social.


ps 1. acusei outra pessoa de ser culpada pelo que disse Azedo. Na versão acima, está corrigido. Mil agradecimentos ao Gilberto Maringoni, pelo alerta. 

ps 2. quem quiser ler mais a respeito, sugiro as obras citadas abaixo, onde está parte das informações comentadas no texto.

PRESOT, Aline Alves. As Marchas da família com Deus pela liberdade e o golpe de 1964. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação em História Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.

RODEGHERO, Carla Simone. Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n.44, p. 463-487, 2002.

CORDEIRO, Janaína Martins. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo: direitas, participação política e golpe no Brasil, 1964. Rev. hist. (São Paulo), n.180, a01720, 2021, http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2021.167214

 

A geopolítica de Cantalice

O PT tem vários intelectuais.

Um deles é Alberto Cantalice.

Está sempre buscando interpretar os acontecimentos.

E usa, como um dos meios para difundir suas conclusões, o X.

Uma de suas postagens mais recentes no X diz assim: “Os 40 anos de neoliberalismo produziram uma catástrofe no Modo de Produção Capitalista. Hoje no mundo somente duas alternativas se apresentam: o Fascismo de Trump, Meloni, Bolsonaro, Milei, Le Pen. Ou o Socialismo-Democrático de Lula, Sánchez, Sanders, Boric, Petro, Lopez Obrador. Tendo a China como um caminho do meio”.

Deixa eu ver se eu entendi.

Tem o “Modo de Produção Capitalista”, com maiúsculas.

Como grafavam alguns manuais, o MPC.

Aí aconteceu uma catástrofe “no” MPC.

Quem produziu a catástrofe?

Segundo Cantalice, “os 40 anos de neoliberalismo”.

Cantalice não fala sobre como essa “catástrofe” teria distribuído seus efeitos sobre os diferentes setores sociais.

Na ausência desse “detalhe”, alguém pode achar que, antes do neoliberalismo, vivíamos num paraíso, agora perdido.

Segundo Cantalice, como resultado da “catástrofe” neoliberal, hoje no mundo só teríamos duas alternativas: “fascismo” ou “socialismo-democrático”.

Se entendi bem, trata-se de uma versão muito esquisitona e um pouco descafeinada da disjuntiva “socialismo ou barbárie” de Engels, citado por Rosa Luxemburgo.

A disjuntiva versão Cantalice é “fascismo ou socialismo democrático”. Fascismo com F maíusculo e Socialismo-Democrático com maíusculas e hifen!

A disjuntiva é esquisitona, entre outros motivos, porque Catalice pula da categoria “Modo de Produção Capitalista” para fascismo/socialismo-democrático e, depois, salta para líderes individuais.

A disjuntiva é descafeinada, porque há um certo abismo entre o socialismo de Engels/Rosa e o de Cantalice.

Mas seja lá o que for o socialismo-democrático-segundo-Cantalice, evidentemente ele exclui desta categoria líderes que não considera muito democráticos.

Entretanto, como ficaria ridículo fazer uma disjuntiva sobre o mundo atual e excluir a China da equação, resta a Cantalice fazer um puxadinho no seu mapa do caminho, colocando a China como um “caminho do meio”.

Curiosamente, em todos os outros casos ele cita nomes de pessoas, nesse caso ele cita o nome do país: a China.

Sei que a China foi conhecida no passado como “Império do Meio”, mas o que mesmo Cantalice quereria dizer com “caminho do meio” no ano de 2024, no contexto da tal disjuntiva por ele estabelecida?

Difícil responder.

Afinal, “caminho do meio entre fascismo e socialismo-democrático”, do ponto de vista político, deveria ser a democracia burguesa ou liberal ou como queiram chamar. A China não é isso, evidentemente.

Seria então um “caminho do meio” do ponto de vista econômico?

Se o critério for a presença de empresários capitalistas privados, em todos os países citados eles existem e passam muito bem, obrigado. Por este critério, não consigo imaginar como a China foi parar no “caminho do meio”.

Se o critério for a presença do Estado, em todos os casos citados a presença do Estado é menor do que na China. Portanto, tampouco vejo como colocar a China no “meio”.

Enfim, mexo, remexo e não consigo entender a lógica do argumento de Cantalice.

O que era esquisito, agora começa a virar um pouco bizarro.

Não apenas porque caberia muita discussão sobre em que medida os líderes citados por Cantalice se enquadram no tal “socialismo democrático”.

Não apenas porque a disjuntiva cancela a existência da turma do Biden, que há apenas 4 anos era apresentado como alguém que iria, diziam, “provocar uma revolução no capitalismo”. 

Não apenas porque se fala da extrema-direita fascista, omitindo a existência da direita tradicional.

Mas principalmente por dois motivos adicionais.

A saber:

1/ alguém acredita que os desdobramentos de curto prazo da atual situação mundial cabem dentro das duas “alternativas” indicadas por Cantalice? Onde situar, na “disjuntiva-de-Cantalice-com-caminho-do-meio, Putin/Rússia? E a Índia? E a África? E...

2/ alguém acredita mesmo que a saída de médio prazo para a “catástrofe” causada pelo neoliberalismo seria um Modo de Produção Capitalista com mais democracia e políticas sociais?

Talvez a resposta esteja nos Tuítes Completos do Cantalice.

Mas temo que lá só haverá tuítes.

Aliás, X.

E X me lembra que a verdade está lá fora.

Bem longe de certas postagens.


 

 

sábado, 16 de março de 2024

Horácio Martins de Carvalho, presente!


Horácio Martins de Carvalho nasceu em 28 de fevereiro de 1941.

A despedida será no domingo, 17 de março de 2024, em Curitiba.

Aos que não o conheceram, seguem um vídeo e um texto.

Horário Martins de Carvalho, presente, agora e sempre!


 (24) Horácio Martins de Carvalho - YouTube

O saber como mercadoria. Entrevista especial com Horácio Martins de Carvalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU


Um fungador na Defesa?

Até que evoluímos!!

Saímos da “granada no bolso” para “pisar no calcanhar e fungar no cangote”.

Que o autor das aspas parece durão, está sugerido pelos números de recente anuário de segurança pública.

Sendo assim, há quem acredite que o fungador seria o cara ideal para substituir o virtuose que nem nomeado deveria ter sido.

Substituindo Múcio na Defesa, o fungador poderia, dizem, ser durão com os barnabés fardados e armados.

Temo, entretanto, que o fungador seja do tipo que se encanta com uniformes.

E que, no final das contas, seu rosnado vire ronronar.

É por esses e por outros que, como reconheceu o presidente Lula, estamos “aquém”.

Dá tempo de mudar. Mas tem que ser rápido!




quarta-feira, 13 de março de 2024

GOLPE DE 64, IGNORAR OU CONDENAR?

 


 

Publico abaixo o roteiro de minha contribuição à live do Manifesto Petista, realizada no dia 13 de março de 2024.

Boa noite.

Meu papel aqui é abrir o debate.

Começo lembrando que há 60 anos, no dia 13 de março de 1964, ocorreu um grande comício, na cidade do RJ, em frente à estação da Central do Brasil.

A grande figura do comício foi o Presidente da República, João Goulart.

Abaixo o discurso feito por João Goulart, disponível no endereço:

https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2014/03/discurso-de-jango-na-central-do-brasil-em-1964

Devo agradecer em primeiro lugar às organizações promotoras deste comício, ao povo em geral e ao bravo povo carioca em particular, a realização, em praça pública, de tão entusiasta e calorosa manifestação. Agradeço aos sindicatos que mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a todos os brasileiros que, neste instante, mobilizados nos mais longínquos recantos deste país, me ouvem pela televisão e pelo rádio.

Dirijo-me a todos os brasileiros, não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas, mas também aos milhões de irmãos nossos que dão ao brasil mais do que recebem, que pagam em sofrimento, em miséria, em privações, o direito de ser brasileiro e de trabalhar sol a sol para a grandeza deste país.


Presidente de 80 milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam bem entendidas por todos os nossos patrícios.

Vou falar em linguagem que pode ser rude, mas é sincera sem subterfúgios, mas é também uma linguagem de esperança de quem quer inspirar confiança no futuro e tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade do presente.

Aqui estão os meus amigos trabalhadores, vencendo uma campanha de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu presidente, na presença das mais significativas organizações operárias e lideranças populares deste país.

Chegou-se a proclamar, até, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse a dona da democracia, e a proprietária das praças e das ruas. Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas.

Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reinvindicações.

A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam.

A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício.

Ainda ontem, eu afirmava, envolvido pelo calor do entusiasmo de milhares de trabalhadores no Arsenal da Marinha, que o que está ameaçando o regime democrático neste País não é o povo nas praças, não são os trabalhadores reunidos pacificamente para dizer de suas aspirações ou de sua solidariedade às grandes causas nacionais. Democracia é precisamente isso: o povo livre para manifestar-se, inclusive nas praças públicas, sem que daí possa resultar o mínimo de perigo à segurança das instituições.

Democracia é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do seu dever, não só para interpretar os anseios populares, mas também conquistá-los pelos caminhos da legalidade, pelos caminhos do entendimento e da paz social.

Não há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do povo; não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais sentidas reinvindicações.

Estaríamos, sim, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que de norte a sul, de leste a oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria.

Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro.

O inolvidável Papa João XXIII é quem nos ensina que a dignidade da pessoa humana exige normalmente como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada a todos.

É dentro desta autêntica doutrina cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política social, particurlamente a que diz respeito à nossa realidade agrária.

O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados.

Àqueles que reclamam do Presidente de República uma palavra tranqüilizadora para a Nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social.

Perdem seu tempo os que temem que o governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos ou pessoais; como perdem igualmente o seu tempo os que esperam deste governo uma ação repressiva dirigida contra os interesses do povo. Ação repressiva, povo carioca, é a que o governo está praticando e vai amplia-la cada vez mais e mais implacavelmente, assim na Guanabara como em outros estados contra aqueles que especulam com as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo e que sonegam gêneros alimentícios e jogam com seus preços.

Ainda ontem, trabalhadores e povo carioca, dentro da associações de cúpula de classes conservadoras, levanta-se a voz contra o Presidente pelo crime de defender o povo contra aqueles que o exploram nas ruas, em seus lares, movidos pela ganância.

Não tiram o sono as manifestações de protesto dos gananciosos, mascarados de frases patrióticas, mas que, na realidade, traduzem suas esperanças e seus propósitos de restabelecer a impunidade para suas atividades anti-sociais.

Não receio ser chamado de subversivo pelo fato de proclamar, e tenho proclamado e continuarei a proclamando em todos os recantos da Pátria – a necessidade da revisão da Constituição, que não atende mais aos anseios do povo e aos anseios do desenvolvimento desta Nação.

Essa Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facultado participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas.

Todos têm o direito à liberdade de opinião e de manifestar também sem temor o seu pensamento. É um princípio fundamental dos direitos do homem, contido na Carta das Nações Unidas, e que temos o dever de assegurar a todos os brasileiros.

Está nisso o sentido profundo desta grande e incalculável multidão que presta, neste instante, manifestação ao Presidente que, por sua vez, também presta conta ao povo dos seus problemas, de suas atitudes e das providências que vem adotando na luta contra forças poderosas, mas que confia sempre na unidade do povo, das classes trabalhadoras, para encurtar o caminho da nossa emancipação.

É apenas de lamentar que parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional.

São certamente, trabalhadores, os piores surdos e os piores cegos, porque poderão, com tanta surdez e tanta cegueira, ser os responsáveis perante a História pelo sangue brasileiro que possa vir a ser derramado, ao pretenderem levantar obstáculos ao progresso do Brasil e à felicidade de seu povo brasileiro.

De minha parte, à frente do Poder Executivo, tudo continuarei fazendo para que o processo democrático siga um caminho pacífico, para que sejam derrubadas as barreiras que impedem a conquista de novas etapas do progresso.

E podeis estar certos, trabalhadores, de que juntos o governo e o povo – operários , camponeses, militares, estudantes, intelectuais e patrões brasileiros, que colocam os interesses da Pátria acima de seus interesses, haveremos de prosseguir de cabeça erguida, a caminhada da emancipação econômica e social deste país.

O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”.

A maioria dos brasileiros já não se conforma com uma ordem social imperfeita, injusta e desumana. Os milhões que nada têm impacientam-se com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de um progresso tão duramente construído, mas construído também pelos mais humildes.

Vamos continuar lutando pela construção de novas usinas, pela abertura de novas estradas, pela implantação de mais fábricas, por novas escolas, por mais hospitais para o nosso povo sofredor; mas sabemos que nada disso terá sentido se o homem não for assegurado o direito sagrado ao trabalho e uma justa participação nos frutos deste desenvolvimento.

Não, trabalhadores; sabemos muito bem que de nada vale ordenar a miséria, dar-lhe aquela aparência bem comportada com que alguns pretendem enganar o povo. Brasileiros, a hora é das reformas de estrutura, de métodos, de estilo de trabalho e de objetivo. Já sabemos que não é mais possível progredir sem reformar; que não é mais possível admitir que essa estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional para milhões de brasileiros que da portentosa civilização industrial conhecem apenas a vida cara, os sofrimentos e as ilusões passadas.

O caminho das reformas é o caminho do progresso pela paz social. Reformar é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada pelas realidades do tempo em que vivemos.

Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da SUPRA com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa Pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos.

Ainda não é a reformulação de nosso panorama rural empobrecido.

Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado.

Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro.

O que se pretende com o decreto que considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável.

Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, quese apoderaram das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70 bilhões de dinheiro do povo, não deve beneficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas sim o povo.

Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras abandonadas em títulos de dívida pública e a longo prazo.

Reforma agrária com pagamento prévio do latifundio impNão é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, quese apoderaram das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70 bilhões de dinheiro do povo, não deve beneficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas sim o povo.

Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras abandonadas em títulos de dívida pública e a longo prazo.rodutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. É negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro. Por isso o decreto da SUPRA não é a reforma agrária.

Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária. Sem emendar a Constituição, que tem acima de dela o povo e os interesses da Nação, que a ela cabe assegurar, poderemos ter leis agrárias honestas e bem-intencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas.

Graças à colaboração patriótica e técnica das nossas gloriosas Forças Armadas, em convênios realizados com a SUPRA, graças a essa colaboração, meus patrícios espero que dentro de menos de 60 dias já comecem a ser divididos os latifúndios das beiras das estradas, os latifúndios aos lados das ferrovias e dos açudes construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de saneamento realizadas com o sacrifício da ação.

E, feito isto, os trabalhadores do campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais sentida e justa reinvindicação, aquela que lhe dará um pedaço de terra para trabalhar, um pedaço de terra para cultivar. Aí, então, o trabalhador e sua família irão trabalhar para si próprios, porque até aqui eles trabalham para o dono da terra, a quem entregam, como aluguel, metade de sua produção. E não se diga, trabalhadores, que há meio de se fazer reforma sem mexer a fundo na Constituição. Em todos os países civilizados do mundo já foi suprimido do texto constitucional parte que obriga a desapropriação por interesse social, a pagamento prévio, a pagamento em dinheiro.

No Japão de pós-guerra, há quase 20 anos, ainda ocupado pelas forças aliadas vitoriosas, sob o patrocínio do comando vencedor, foram distribuídos dois milhões e meio de hectares das melhores terras do país, com indenizações pagas em bônus com 24 anos de prazo, juros de 3,65% ao ano. E quem é que se lembrou de chamar o General MacArthur de subversivo ou extremista?

Na Itália, ocidental e democrática, foram distribuídos um milhão de hectares, em números redondos, na primeira fase de uma reforma agrária cristã e pacífica iniciada há quinze anos, 150 mil famílias foram beneficiadas.

No México, durante os anos de 1932 a 1945, foram distribuídos trinta milhões de hectares, com pagamento das indenizações em títulos da dívida pública, 20 anos de prazo, juros de 5% ao ano, e desapropriação dos latifúndios com base no valor fiscal.

Na Índia foram promulgadas leis que determinam a abolição da grande propriedade mal aproveitada, transferindo as terras para os camponeses.

Essas leis abrangem cerca de 68 milhões de hectares, ou seja, a metade da área cultivada da Índia. Todas as nações do mundo, independentemente de seus regimes políticos, lutam contra a praga do latifúndio improdutivo.

Nações capitalistas, nações socialistas, nações do Ocidente, ou do Oriente, chegaram à conclusão de que não é possível progredir e conviver com o latifúndio.

A reforma agrária não é capricho de um governo ou programa de um partido. É produto da inadiável necessidade de todos os povos do mundo. Aqui no Brasil, constitui a legenda mais viva da reinvindicação do nosso povo, sobretudo daqueles que lutaram no campo.

A reforma agrária é também uma imposição progressista do mercado interno, que necessita aumentar a sua produção para sobreviver.

Os tecidos e os sapatos sobram nas prateleiras das lojas e as nossas fábricas estão produzindo muito abaixo de sua capacidade. Ao mesmo tempo em que isso acontece, as nossas populações mais pobres vestem farrapos e andam descalças, porque não tem dinheiro para comprar.

Assim, a reforma agrária é indispensável não só para aumentar o nível de vida do homem do campo, mas também para dar mais trabalho às industrias e melhor remuneração ao trabalhador urbano.

Interessa, por isso, também a todos os industriais e aos comerciantes. A reforma agrária é necessária, enfim, à nossa vida social e econômica, para que o país possa progredir, em sua indústria e no bem-estar do seu povo.

Como garantir o direito de propriedade autêntico, quando dos quinze milhões de brasileiros que trabalham a terra, no Brasil, apenas dois milhões e meio são proprietários?

O que estamos pretendendo fazer no Brasil, pelo caminho da reforma agrária, não é diferente, pois, do que se fez em todos os países desenvolvidos do mundo. É uma etapa de progresso que precisamos conquistar e que haveremos de conquistar.

Esta manifestação deslumbrante que presenciamos é um testemunho vivo de que a reforma agrária será conquistada para o povo brasileiro. O próprio custo da produção, trabalhadores, o próprio custo dos gêneros alimentícios está diretamente subordinado às relações entre o homem e a terra. Num país em que se paga aluguéis da terra que sobem a mais de 50 por cento da produção obtida daquela terra, não pode haver gêneros baratos, não pode haver tranquilidade social.

No meu Estado, por exemplo, o Estado do deputado Leonel Brizola, 65% da produção de arroz é obtida em terras alugadas e o arrendamento ascende a mais de 55% do valor da produção. O que ocorre no Rio Grande é que um arrendatário de terras para plantio de arroz paga, em cada ano, o valor total da terra que ele trabahou para o proprietário. Esse inquilinato rural desumano é medieval é o grande responsável pela produção insuficiente e cara que torna insuportável o custo de vida para as classes populares em nosso país.

A reforma agrária só prejudica a uma minoria de insensíveis, que deseja manter o povo escravo e a Nação submetida a um miseravel padrão de vida.

E é claro, trabalhadores, que só se pode iniciar uma reforma agrária em terras economicamente aproveitáveis. E é claro que não poderíamos começar a reforma agrária, para atender aos anseios do povo, nos Estados do Amazonas ou do Pará. A reforma agEsta manifestação deslumbrante que presenciamos é um testemunho vivo de que a reforma agrária será conquistada para o povo brasileiro. O próprio custo da produção, trabalhadores, o próprio custo dos gêneros alimentícios está diretamente subordinado às relações entre o homem e a terra. Num país em que se paga aluguéis da terra que sobem a mais de 50 por cento da produção obtida daquela terra, não pode haver gêneros baratos, não pode haver tranquilidade social.

No meu Estado, por exemplo, o Estado do deputado Leonel Brizola, 65% da produção de arroz é obtida em terras alugadasrária deve ser iniciada nas terras mais valorizadas e ao lado dos grandes centros de consumo, com transporte fácil para o seu escoamento.

Governo nenhum, trabalhadores, povo nenhum, por maior que seja seu esforço, e até mesmo o seu sacrifício, poderá enfrentar o monstro inflacionário que devora os salários, que inquieta o povo assalariado, se não forem efetuadas as reformas de estrutura de base exigidas pelo povo e reclamadas pela Nação.

Tenho autoridade para lutar pela reforma da atual Constituição, porque esta reforma é indispensável e porque seu objetivo único e exclusivo é abrir o caminho para a solução harmônica dos problemas que afligem o nosso povo.

Não me animam, trabalhadores – e é bom que a nação me ouça – quaisquer propósitos de ordem pessoal. Os grandes beneficiários das reformas serão, acima de todos, o povo brasileiro e os governos que me sucederem. A eles, trabalhadores, desejo entregar uma Nação engrandecida, emancipada e cada vez mais orgulhosa de si mesma, por ter resolvido mais uma vez, pacificamente, os graves problemas que a História nos legou. Dentro de 48 horas, vou entregar à consideração do Congresso Nacional a mensagem presidencial deste ano.

Nela, estão claramente expressas as intenções e os objetivos deste governo. Espero que os senhres congressistas, em seu patriotismo, compreendam o sentido social da ação governamental, que tem por finalidade acelerar o progresso deste país e assegurar aos brasileiros melhores condições de vida e trabalho, pelNão me animam, trabalhadores – e é bom que a nação me ouça – quaisquer propósitos de ordem pessoal. Os grandes beneficiários das reformas serão, acima de todos, o povo brasileiro e os governos que me sucederem. A eles, trabalhadores, desejo entregar uma Nação engrandecida, emancipada e cada vez mais orgulhosa de si mesma, por ter resolvido mais uma vez, pacificamente, os graves problemas que a História nos legou. o caminho da paz e do entendimento, isto é, pelo caminho reformista.

Mas estaria faltando ao meu dever se não transmitisse, também, em nome do povo brasileiro, em nome destas 150 ou 200 mil pessoas que aqui estão, caloroso apelo ao Congresso Nacional para que venha ao encontro das reinvindicações populares, para que, em seu patriotismo, sinta os anseios da Nação, que quer abrir caminho, pacífica e democraticamente para melhores dias. Mas também, trabalhadores, quero referir-me a um outro ato que acabo de assinar, interpretando os sentimentos nacionalistas destes país. Acabei de assinar, antes de dirigir-me para esta grande festa cívica, o decreto de encampação de todas as refinarias particulares.

A partir de hoje, trabalhadores brasileiros, a partir deste instante, as refinarias de Capuava, Ipiranga, Manguinhos, Amazonas, e Destilaria Rio Grandense passam a pertencer ao povo, passam a pertencer ao patrimônio nacional.

Procurei, trabalhadores, depois de estudos cuidadosos elaborados por órgãos técnicos, depois de estudos profundos, procurei ser fiel ao espírito da Lei n. 2.004, lei que foi inspirada nos ideais patrióticos e imortais de um brasileiro que também continua imortal em nossa alma e nosso espírito.

Ao anunciar, à frente do povo reunido em praça pública, o decreto de encampação de todas as refinarias de petróleo particulares, desejo prestar homenagem de respeito àquele que sempre esteve presente nos sentimentos do nosso povo, o grande e imortal Presidente Getúlio Vargas.

O imortal e grande patriota Getúlio Vargas tombou, mas o povo continua a caminhada, guiado pelos seus ideais. E eu, particurlamente, vivo hoje momento de profunda emoção ao poder dizer que, com este ato, soube interpretar o sentimento do povo brasileiro.

Alegra-me ver, também, o povo reunido para prestigiar medidas como esta, da maior significação para o desenvolvimento do país e que habilita o Brasil a aproveitar melhor as suas riquezas minerais, especialmente as riquezas criadas pelo monopólio do petróleo. O povo estará sempre presente nas ruas e nas praças públicas, para prestigiar um governo que pratica atos como estes, e também para mostrar às forças reacionárias que há de continuar a sua caminhada, no rumo da emancipação nacional.

Na mensagem que enviei à consideração do Congresso Nacional, estão igualmente consignadas duas outras reformas que o povo brasileiro reclama, porque é exigência do nosso desenvolvimento e da nossa democracia. Refiro-me à reforma eleitoral, à reforma ampla que permita a todos os brasileiros maiores de 18 anos ajudar a decidir dos seus destinos, que permita a todos os brasileiros que lutam pelo engrandecimento do país a influir nos destinos gloriosos do Brasil. Nesta reforma, pugnamos pelo princípio democrático, princípio democrático fundamental, de que todo alistável deve ser também elegível.

Também está consignada na mensagem ao Congresso a reforma universitária, reclamada pelos estudantes brasileiros. Pelos universitários, classe que sempre tem estado corajosamente na vanguarda de todos os movimentos populares nacionalistas.

Ao lado dessas medidas e desses decretos, o governo continua examinando outras providências de fundamental importância para a defesa do povo, especialmente das classes populares.

Dentro de poucas horas, outro decreto será dado ao conhecimento da Nação. É o que vai regulamentar o preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupados, preços que chegam a afrontar o povo e o Brasil, oferecidos até mediante o pagamento em dólares. Apartamento no Brasil só pode e só deve ser alugado em cruzeiros, que é dinheiro do povo e a moeda deste país. Estejam tranqüilos que dentro em breve esse decreto será uma realidade.

E realidade há de ser também a rigorosa e implacável fiscalização para seja cumprido. O governo, apesar dos ataques que tem sofrido, apesar dos insultos, não recuará um centímetro sequer na fiscalização que vem exercendo contra a exploração do povo. E faço um apelo ao povo para que ajude o governo na fiscalização dos exploradores do povo, que são também exploradores do Brasil. Aqueles que desrespeitarem a lei, explorando o povo – não interessa o tamanho de sua fortuna, nem o tamanho de seu poder, esteja ele em Olaria ou na Rua do Acre – hão de responder, perante a lei, pelo seu crime.

Aos servidores públicos da Nação, aos médicos, aos engenheiros do serviço público, que também não me têm faltado com seu apoio e o calor de sua solidariedade, posso afirmar que suas reinvindicações justas estão sendo objeto de estudo final e que em breve serão atendidas. Atendidas porque o governo deseja cumprir o seu dever com aqueles que permanentemente cumprem o seu para com o país.

Ao encerrar, trabalhadores, quero dizer que me sinto reconfortado e retemperado para enfrentar a luta que tanto maior será contra nós quanto mais perto estivermos do cumprimento de nosso dever. À medida que esta luta apertar, sei que o povo também apertará sua vontade contra aqueles quenão reconhecem os direitos populares, contra aqueles que exploram o povo e a Nação.

Sei das reações que nos esperam, mas estou tranqüilo, acima de tudo porque sei que o povo brasileiro já está amadurecido, já tem consciência da sua força e da sua unidade, e não faltará com seu apoio às  medidas de sentido popular e nacionalista.

Quero agradecer, mais uma vez, esta extraordinária manifestação, em que os nossos mais significativos líderes populares vieram dialogar com o povo brasileiro, especialmente com o bravo povo carioca, a respeito dos problemas que preocupam a Nação e afligem todos os nossos patrícios. Nenhuma força será capaz de impedir que o governo continue a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro. E, para isto, podemos declarar, com orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e gloriosas Forças Armadas da Nação.

Hoje, com o alto testemunho da Nação e com a solidariedade do povo, reunido na praça que só ao povo pertence, o governo, que é também o povo e que também só ao povo pertence, reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira. Não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil.

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Outra grande figura no comício foi o ex-governador do RS, Leonel Brizola, então deputado federal.

Abaixo o discurso feito por Brizola, disponível no endereço:

https://upassos.wordpress.com/2011/04/18/o-discurso-de-brizola-no-comcio-da-central-do-brasil-13-de-maro-de-1964/

“Este é um encontro do povo com o governo. Encontro com esta multidão e com os milhões que, através dos seus rádios, do recesso de seus lares, estão presentes não apenas para aplaudir, mas para dialogar com o governo.  Se fosse apenas para aplaudir, não seríamos um povo independente, mas um rebanho de ovelhas. O povo está aqui para clamar, para reivindicar, para exigir e para declarar sua inconformidade com a situação que estamos vivendo.

Saudamos o governo pelo seu gesto democrático. Porque é realmente democrático um governante descer para o diálogo com o povo.  E estamos certos de que o presidente não veio, nesta noite, apenas para falar, mas para ouvir e para ceder ao povo brasileiro. Para ceder a esta pressão – é a voz que vem da fonte de todo o poder, é a pressão popular, a que com honra, um governante deve se submeter.

Quero citar e aplaudir estes dois atos que devem deflagrar um processo de transformação em nosso país: o decreta a Supra e o decreto de expropriação das refinarias de petróleo.

Povo e governo, num país como o nosso, devem formar uma unidade.  Unidade esta que já existiu em agosto de 1961, quando o povo praticamente de fuzil na mão, repeliu o golpismo que nos ameaçava e garantiu os nossos direitos. Unidade, esta, que já existiu no plebiscito de janeiro de 1963, quando mais de dez milhões de brasileiros exigiram o fim da conciliação do parlamentarismo e a realização imediata das reformas.

Quando uma multidão se reúne como nesta noite, isto significa um grito do nos caminhos da sua libertação. Em verdade, se conseguirmos hoje a  restauração daquela unidade, o presidente poderá retornar, através da manifestação do povo, às origens de seu governo. E, para isso, será suficiente que ponha fim à política de conciliação e organize um governo realmente democrático, popular e nacionalista.

Pode ser que, neste momento, a minha palavra esteja sendo impugnada. Podem julgar que as minhas credenciais não sejam suficientes. Mas o meu lugar é ao lado do povo, interpretando suas aspirações, e por isso, aqui estou como um dos seus autênticos representantes.

Mas quero perguntar ao povo: querem que continue a política de conciliação ou preferem um governo nacionalista e popular? Aos que desejam  um governo nacionalista e popular que levantem as mãos.

Chegamos a um impasse na vida do nosso país.  O povo brasileiro já não suporta mais suas atuais condições de vida.  Hoje, até as liberdades  democráticas estão ameaçadas.  Vimos isso em Belo Horizonte, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, onde um governo reacionário está queimando os ranchos dos camponeses.   O que se passa no estado da Guanabara é uma prova dessa ameaça, pois a Guanabara é governada por um energúmeno.  Tanto isso é verdade que o próprio presidente da República, para falar em praça pública, precisou mobilizar as valorosas Forças Armadas.

Não podemos continuar nesta situação.  O povo está exigindo uma saída.  Mas o povo olha para um dos poderes da República, que é o Congresso Nacional, e ele diz NÃO, porque é um poder controlado por uma maioria de latifundiários, reacionários, privilegiados e de ibadianos.  É um Congresso que não dará nada mais ao povo brasileiro.  O atual Congresso não mais se identifica com as aspirações do nosso povo.  A verdade é que, como está, a situação não pode continuar.  E aqui vai a palavra de quem deseja apenas uma saída  para o trágico impasse a que chegamos.  A palavra de quem apenas quer ver o país livre da espoliação internacional como está escrito na CartaTestamento de Getúlio Vargas.

E o Executivo? Os poderes da República, até agora, com suas perplexidades, sua inoperância e seus antagonismos, não decidem.  Por que não conferir a decisão ao povo brasileiro?  O povo é a fonte de todo poder.  Portanto, a única saída pacífica é fazer com que a decisão volte ao povo através de uma Constituinte, com a eleição de  um congresso popular, de que participem os trabalhadores, os camponeses, os sargentos e oficiais nacionalistas, homens públicos autênticos, e do qual sejam eliminadas as velhas raposas da política tradicional.

Dirão que isto é ilegal.  Dirão que isto é subversivo.  Dirão que isto é inconstitucional.  Por que, então, não resolvem a dúvida através de um plebiscito?

Verão que o povo votará pela derrogação do atual Congresso.  

Dirão que isso é continuísmo. Mas já ouvi pessoalmente do presidente da República a sua palavra assegurando que, se fosse decidida nesse país a realização de eleições para uma Constituinte, sem a participação dos grupos econômicos e da imprensa alienada, mas com o voto dos analfabetos, dos soldados e cabos, e com uma imprensa democratizada, o presidente encerraria o seu mandato.

A partir destes dois atos – assinatura do decreto da SUPRA e do que encampa as refinarias particulares – desencadear-se-á, por esse país, a violência. Devemos, pois, organizar-nos para defendermos nossos direitos.  Não aceitaremos qualquer golpe, venha ele de onde vier.  O problema é de mais liberdade para o povo, pois quanto mais liberdade o povo tiver maior supremacia exercerá sobre as minorias dominantes e reacionárias que se associaram ao processo de espoliação de nosso país. O nosso caminho é pacífico, mas saberemos responder à violência com a violência.  

O nosso presidente que se decida a caminhar conosco e terá o povo ao seu lado.  Quem tem o povo ao seu lado nada tem a temer.

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A reação da direita foi acelerar o golpe.

O golpe não foi uma reação ao comício.

O golpe foi acelerado pelo comício.

Assim como o golpe do Chile, em 1973, foi acelerado pela decisão de Allende de convocar um plebiscito para o povo decidir.

Mas para o golpe ter êxito, tiveram que criar a aparência de que ele tinha apoio majoritário na população.

Hoje há vários estudos demonstrando que o golpe não tinha este apoio.

Por exemplo, ler aqui: 

https://www.camara.leg.br/noticias/429807-jango-tinha-70-de-aprovacao-as-vesperas-do-golpe-de-64-aponta-pesquisa/

Neste texto está dito entre outras coisas o seguinte: “Pesquisas feitas pelo Ibope às vésperas do golpe de 31 de março de 1964 mostram que o então presidente da República, João Goulart, deposto pelos militares, tinha amplo apoio popular. Doadas à Universidade de Campinas (Unicamp) em 2003, as sondagens não foram reveladas à época”.

Para passar a impressão de que a maioria do povo respaldava o golpe, foram organizadas as famosas Marchas da Família com Deus pela Liberdade

Levaram esse nome as manifestações organizadas entre 19 de março e 8 de junho de 1964.

A imprensa da época disse que a primeira Marcha, realizada em São Paulo, teria reunido entre 300 e 500 mil pessoas.

A marcha teve entre suas convocadoras as seguintes entidades:

Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE) Liga da Mulher pela Democracia (LIMDE)
União Cívica Feminina (UCF)
Movimento de Arregimentação Feminina
Fraterna Amizade Cristã Urbana e Rural
Círculos Operários Católicos
Associações Cristãs de Moços
Associação Comercial de São Paulo
Sociedade Rural Brasileira
Clube dos Diretores Lojistas
Conselho de Entidades Democráticas
Campanha para Educação Cívica
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
Centro das Indústrias do Estado de São Paulo

Na marcha foi distribuído um "Manifesto ao Povo do Brasil".

Algumas das palavras de ordem citadas na Marcha foram:

“Reformas sim, Comunismo não”.
“Tá chegando a hora de Jango ir embora”.
“Vermelho bom, só batom”.
“Verde e amarelo, sem foice nem martelo”.
“Família que reza unida, permanece unida.”

Apesar de toda a preparação, o início do golpe foi meio desastrado e, se tivesse havido uma reação à altura, a história poderia ter sido um pouco diferente.

O início do golpe foi a movimentação de tropas que foram de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro, sob comando do general Olympio Mourão, que se autointitulava “vaca fardada”.

O alvo era Jango, que estava no Rio.

Mas não houve reação à altura.

O “dispositivo militar” do governo não enfrentou o golpe.

Por isso, os Estados Unidos, que organizaram a Operação Brother Sam, não precisaram intervir diretamente.

Isso facilitou aos golpistas usar sua maioria no Congresso Nacional para dar uma verniz de legalidade ao golpe.

Tudo isso aconteceu a partir do dia 1 de abril, o dia da mentira, como lembrou no exato momento o então deputado Doutel de Andrade.

A grande mentira, na ocasião, foi dada pelo senador Auro Moura Andrade, então na presidência do Congresso Nacional, que declarou que Jango “deixou a nação brasileira”, “abandonou o governo”, “assim sendo, declaro vaga a Presidência da República.”

Jango estava em Porto Alegre.

Auro e os golpistas sabiam disso.

A mentira gerou reações instantâneas. Por exemplo, o deputado Almino Afonso relata ter ouvido Tancredo Neves, líder do governo na Câmara, gritar: “Canalha! Canalha!”.

No dia 2 de abril, Ranieri Mazzilli assume interinamente o governo.

No dia 9 de abril, o Supremo Comando Revolucionário (General Costa e Silva, Vice-Almirante Augusto Rademaker, Tenente-Brigadeiro Correia de Melo) decretou o Ato Institucional número 1.

A íntegra do AI 1 pode ser lida aqui: 

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm

No início do referido ato, pode-se ler o seguinte: 

À NAÇÃO

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.

A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.

O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica resolve editar o seguinte.

O Ato Institucional diz também, no seu artigo segundo, o seguinte: "A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República, cujos mandatos terminarão em trinta e um (31) de janeiro de 1966, será realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, dentro de dois (2) dias, a contar deste Ato, em sessão pública e votação nominal".

Com base no AI 1, saiu uma lista de cassações, disponível aqui:

https://memorialdademocracia.com.br/card/ato-1-da-ditadura-rasga-a-constituicao

Os dez primeiros nomes da lista foram os seguintes:

1. Luiz Carlos Prestes
2. João Goulart
3. Jânio da Silva Quadros
4. Miguel Arraes
5. Darcy Ribeiro
6. Raul Ryff
7. Waldir Pires
8. General Luiz Gonzaga de Oliveira Leite
9. General Sampson da Nóbrega Sampaio
10. Leonel Brizola

O Ato Institucional número 1 determinou, também, que o Congresso Nacional indicasse em 48 horas um novo presidente.

No dia 11 de abril, o Congresso elegeu o Marechal Castelo Branco.

Castelo Branco: 361 votos
Juarez Távora: 3 votos
Eurico Gaspar Dutra: 2 votos
72 parlamentares se abstiveram
37 ausências

Detalhe: Juscelino Kubitschek e Ulysses Guimarães votaram em Castelo Branco, talvez acreditando que assim seria possível virar a página do golpe.

Para vice presidente houve disputa entre José Maria Alkmim e Audo Moura Andrade. 

Ganhou José Maria Alkmin, deputado federal do PSD.

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Porque não ignorar estes fatos, nem tudo o que se seguiu?

1/primeiro, porque o povo brasileiro pagou um preço altíssimo por conta do golpe, que interrompeu as reformas que teriam permitido que o futuro do Brasil fosse muito diferente do que foi;

2/segundo, porque a impunidade favorece a repetição do crime, como vimos em 2016, em 2018, no governo cavernícola e na intentona de 8 de janeiro de 2023;

3/terceiro, porque as forças armadas continuam educando seus oficiais na cartilha de que o golpe foi positivo. Não se trata apenas de comemorar o 31 de março. O currículo das escolas militares continua baseado em mentiras;

4/quarto, porque forças armadas assim educadas se comportam como tropa auxiliar do Pentágono e de seus aliados, como Israel (vide recente acordo da FAB sobre manutenção de drones comprados em Israel).

Deste ponto de vista, se for verdade que Lula determinou a suspensão de eventos oficiais em memória dos 60 anos do golpe militar, estaríamos colocando no mesmo nível os criminosos e os que lutaram contra o crime.

Por tudo isso, de nossa parte, nada de ignorar.

E nada de remoer.

Devemos condenar, claro.

Mas não basta condenar.

É preciso agir.

Por exemplo cumprindo as determinações constantes do relatório final da CNV, de 2014. 

Mudando o artigo 142. 

Mudando a formação dos oficiais. 

Mudando o ministro da Defesa. 

E participando do ato de 23 de março.